sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano novo

Hoje eu fechei os olhos e me lembrei do seu sorriso. Foi assim mesmo, eu nem estava pensando em você nem nada, simplesmente pisquei e você apareceu sorrindo na minha cabeça, foi tão inesperado que tive que rir sozinha da travessura do meu subconsciente, mas então passou a graça e eu quis te ver, precisava ter certeza que eu não estava te inventando, que você existe de verdade. Eu queria muito te ver antes de viajar, antes do ano virar, e olha que eu nem ligo muito pra essas festas de fim de ano, a cidade fica com um cheiro todo diferente, já reparou no cheiro da cidade? Todo ano fica assim, esse cheiro de final medíocre para um filme longo demais, e eu nunca tenho vontade de fazer nada, exceto agora que eu quero te ver. Acho que você foi a única coisa boa que me aconteceu esse ano, e é estranho pensar que você nem aconteceu pra mim, pelo menos não completamente, mas foi suficiente para eu querer te ver logo quando eu não faço questão de ver ninguém.
Enfim, apesar de toda a minha conversa inebriante com sua caixa postal, eu provavelmente não vou conseguir te ver antes de ir, um mês não é tanta coisa, eu sei, você não precisa me dizer, mas daí eu vou com essa dúvida, vou ficar todo o mês e sabe lá mais quantos dias até você querer me ver de novo (estou fazendo um drama bem pequenininho só pra você dizer que quer me ver sim, mesmo que você não queira, ou não diga, estou imaginando esse diálogo e estou feliz com ele) me perguntando se o que eu lembrei te pertence mesmo ou se eu já distorci tudo para adequar à minha memória; acho que você devia vir até aqui para tirar de mim essa dúvida, pode vir agora, estou acordada.
Não fique pensando que eu estou com saudade, eu só queria muito, muito, te ver.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Pode ser?

E daí se eu gosto de sangue?
E daí se minha analista insiste em me perguntar se eu já me apaixonei e eu nunca sei o que responder e acabo dizendo que não?
Às vezes digo que sim e a conversa fica estranha, estranha por que eu não consigo deixar de pensar em quem eu amei. São fantasmas, eu sei, mas são meus fantasmas e gosto que eles me rodeiem durante o dia, gosto de ver os rostos dos meus fantasmas se deformando pelo meu afastamento físico com os donos de seus corpos, mudando de traços pela brincadeira do esquecimento, até que se tornam caricaturas completamente distorcidas daquilo que um dia eu conheci tão bem e, ainda assim, gosto que eles estejam ali, que participem comigo de cada pequena atividade, que continuem me conhecendo, mesmo que somente na realidade paralela que criei para nós, eu e meus amores-fantasmas. Forço uma intimidade com ilusões que querem ir embora, é verdade, diversas vezes já me pediram a carta de alforria, mas são minhas ilusões, só vou deixá-las partir quando eu não tiver mais o que contar, quando eu não tiver mais vontade que me conheçam; venha, ilusão, é inútil resistir, sente-se, fiz macarrão e comprei vinho branco para o jantar.
Daqui de onde estou sentada não vejo problema nenhum em gostar de sangue. A vida é suja assim mesmo e, dentro dela, eu prefiro ficar com o que é mais cru, com o que é mais líquido e colorido. Limpas são apenas as ilusões que, apesar de também me agradarem muito, não servem para andar de mãos dadas na rua, nem para dar beijos no cinema; o limpo e o bonito não satisfazem por completo, o sujo precisa fazer o contrapeso, eu fico com o sujo, não me importo, quero mesmo é ter a liberdade de escolhê-lo.
E daí se eu não quiser falar de amor?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Ossos do ofício

Às vezes imagino meu corpo sem a pele, as órbitas vazias de olho, o nariz afilado sem cartilagem e sem também nenhum sinal de que algum dia em mim existiram orelhas (para serem mordidas, para ouvirem sussurros); somente os ossos e os dentes podres pendentes da mandíbula quebrada da caveira (não importa o que se faça em vida, os dentes sempre apodrecem).
Arranco mentalmente cada camada. A epiderme sai com uma facilidade surpreendente, expondo o tecido adiposo incomodamente amarelo e macio e os músculos atrofiados, que exibem o mesmo aspecto de carne fresca das peças de gado penduradas por ganchos na vitrine do açougue; tiro os nervos, os vasos, deixo a linfa incolor transbordar pela fáscia friável do abdome enquanto me desfaço gentilmente do subcutâneo e, finalmente, alcanço os ossos, a única coisa que resta depois dos anos, quando resolvemos matar a saudade e abrir o caixão.
Gosto de tentar imaginar o contorno do meu crânio sem o disfarce de pele que o encobre para garantir ao corpo seu humilde espaço na normalidade. Deslizo a mão por baixo dos cabelos e sinto os relevos e as depressões sob o couro móvel e me agrada projetar na mente a imagem que me perseguirá pela eternidade, o último resquício de matéria que continuará me prendendo à terra, mesmo quando eu já não mais tiver essa necessidade - de estar em algum lugar, de ser alguma coisa. É um alívio insólito mentalizar meu esqueleto, exibir em um rolo de filme imaginário a minha própria decomposição, assistir larvas cilíndricas e aneladas esgueirando-se por entre as catacumbas da medula óssea, torcendo para que familiares não tenham o mau gosto de jogar sobre mim tristes flores de finados e punhados gordos daquela terra pálida e lazarenta que acomoda os parasitas.
Não me olhe desse jeito, não me agrada também abordar o assunto, sou do tipo que vira o rosto ao passar pelo cemitério, mas como nada pode saciar as dúvidas a respeito do destino da alma (que alma?), ao menos me acalma programar a ordem de exoneração de cada órgão aprisionado por detrás das grades de arcos costais; quero dar de comer aos vermes primeiro o coração, por último o pâncreas ou o rim esquerdo, assim não me parece tão ruim.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Pé direito

a casa parece mais escura
quando você
desmorona ou
vai embora

palavras pesadas
quebraram
o telhado e
destruíram igualmente
a sala e
o quarto

ando sobre pedaços
de corpos e
não me importo;
quero mais é pisar
em uma poça de sangue
que não seja
minha

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Silêncio não é ouro

Depois que o silêncio leva embora a tempestade, você tenta diferenciar as flores e os dias de sol do que realmente foi verdade, solta versos para o vento, para um pedestre estrangeiro, se decompõe em explicações nos braços do dono de um bar, no ombro de uma garçonete infeliz, diz o que faltou ser dito para qualquer um, menos para mim. Não espere que eu acredite em palavras que chegam até meus ouvidos por telefone-sem-fio, é uma brincadeira sem graça aonde as frases nunca chegam ao seu destino totalmente corretas, o que me faz pensar que, desde que saíram da sua boca, já estavam incompletas.
Palavras são difíceis de consertar, é melhor procurarmos um especialista, é melhor você ligar para um bombeiro e pedir que traga super bonder; eu não vou estar em casa quando ele chegar, trate de avisá-lo que o problema dessa vez não é no encanamento, mas sim na sua gramática, pergunte o que pode ser feito para nos ajudar. Mostre-o uma a uma - suas palavras-, mesmo aquelas que eu já sei que são mentira, mesmo aquelas que eu tive vergonha de aceitar, conserte todas, mas não permita que ele use cuspe ou chiclete para remendá-las, assim elas novamente irão se quebrar e, quando eu voltar, quero ter palavras inteiras para iluminar, do início ao fim, o nosso jantar.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Anticoagulante

Acontece assim: eu corto os seus pulsos, a culpa vai parecer toda sua, corto seguindo o curso da artéria radial, quero fazer uma bagunça. Eu gosto de sangue. Eu gosto do seu sangue. Quero beber, colocar em um balde, derramar pela casa. Rolar no teu sangue, é isso o que eu quero. Mergulhar em piscina de plasma e enxergar através do seu vermelho, enquanto você cai debilmente na cama, quero nadar nas suas veias.
Sonho todas as noites em tirar sua vida com os dentes, usar os caninos para te rasgar em todos os pulsos principais. Por você, eu não beberia nada além de sangue, nada além do teu sangue, nem mesmo água, e estou com tanta sede, cinco litros de você só vão servir para engrossar minha saliva, tirar a minha água enquanto você sangra no colchão, mas não me peça para tirar também minhas máscaras, não quero acelerar a desidratação.
Seu corpo já está morto, inerte, pálido, chupei sua carótida como uma tangerina e continuo te deixando sangrar mesmo depois de passado o prazo de validade. Antes de beber, encho as tripas de heparina para te impedir de coagular dentro de mim, é muito do seu sangue para pouco ácido no meu estômago, a qualquer momento posso ter uma indigestão, mas ainda assim quero sua estirpe bem viva no meu esôfago e intestino, meu sangue e teu sangue com apenas uma camada de músculo liso para separar, quero me banhar nas suas feridas abertas para que elas não tenham tempo de cicatrizar.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Proibida a caça de animais silvestres

Aqui na frente de casa tem uma placa com a palavra "habitat" escrita entre aspas para explicar aos cidadãos muito urbanos que o rio, mesmo poluído, abriga um ou outro animal silvestre nas suas margens. Sim, eu sei que é muito difícil se concentrar nos avisos com o esgoto do hotel caindo inteiro no canal, obrigando os carangueijos de concha azul a se esconderem entre fezes e lama, ambas cruelmente da mesma cor.
No verão as águas se enchem de plantas (e eu apenas falei de verão porque estou com muito calor), eu queria tocá-las até meus pais me explicarem que aquelas são espécies que tiram seus nutrientes da sujeira e do lixo, as aparências enganam, às vezes as plantas boas estão completamente contaminadas por dentro; minha família foi meio negligente ao me passar conceitos de beleza interior, eu diria.
As capivaras comem mais dessas algas podres do que deveriam; os misantropos que andam de bicicleta comentam em voz alta como elas seriam mais bonitas se emagrecessem alguns quilos, dez ou doze, quem sabe se caminharem durante a noite, quando as ruas estão vazias, para que capivaras precisam dormir, afinal? Mas espere, não acho que seja de todo o ruim escolher preservar somente as capivaras magras, você aprende a ter prioridades ao longo da vida, quando passa a maior parte do tempo pensando estar doente ou jogando videogame acordado. Meu problema está na necessidade de placas proibindo a caça no meio da cidade, fico imaginando emergentes da barra tomando vinho do porto com cabeças de capivara empalhadas na parede da sala, por isso prefiro não fazer atividade física.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Re:

Refaço meus passos para tentar reencontrar o que perdi; volto à padaria, ao mercado, ao shopping e ao salão, recupero moedas e elásticos, mas se confundem com o asfalto os pedaços do meu coração. A musculatura é cinza, falta à ela o oxigênio que respiraram por mim, só o que posso fazer é colocar algodão para preencher os espaços vazios (cheios de necrose). Sei que o esperado era que eu me desfizesse em areia ou que de mim vazasse um líquido qualquer, jamais algodão, algodão é difícil de empurrar de volta para o lugar, principalmente quando não há pele o suficiente para me fechar.
Reescrevo diálogos, em prosa, reafirmando a necessidade de um ponto final, uso os recursos do mercado negro para tentar trocar todos os meus órgãos pelo seu coração, não adianta, a fila para o transplante é maior do que o tempo que me resta e o fim já nos espera sentado - foi preservado com cuidado em tanque de formol.
Relembro dos erros e espero ansiosamente pela sua revolta, pois, para o último ônibus, só vendiam passagem sem data de volta.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

No escuro e vendo

Fecho os olhos pra não ter mais que te escutar, seus sussurros são opacos demais, suas palavras perdem a transparência no momento em que começa a colori-las. A cor faz ficar mais feio o seu papel, não é algo comum. Assim tão próximo, seu corpo transforma-se em borboleta, colorido e repugnante, não é a cor que vai te tirar da posição de inseto, nenhum fingimento pode fazer desaparecer as escamas que carrega nas asas. Suas palavras, entretanto, são mariposas, grotescas ao olhar de perto, porém leves, tranquilas de ouvir de longe; não tentam fingir uma beleza que não têm - suas palavras, as mariposas. Me agrada a sua polinização sincera e desengonçada, monocromaticamente correta em uma natureza fútil e espalhafatosa.
Fecho os olhos e você desaparece, junto com a paisagem, junto com tudo o que eu já quis que você fosse: estátua, espada, esfera, anzol; talvez eu valorize demais as palavras em detrimento das imagens, porém, devo confessar, não sei colorir seus parágrafos dentro das linhas e acho também que ninguém te ensinou a falar colorido sem se borrar.
A solução é ouvir em preto e branco.
O caminho mais curto é me cegar pra tua voz, mas não se perca em um conceito de desafio, há muitos anos coleciono rouquidão, isso é tão ridiculamente fácil, é preciso apenas juntar todo o tempo em que se fecha os olhos pra piscar para ficar a maior parte do dia sem enxergar.

domingo, 21 de agosto de 2011

Exame físico

O abdome é dividido em nove quadrantes, os médicos delimitam previamente as linhas do esquartejamento, sobra aos assassinos pouco ou nenhum trabalho. Quero que você vá descendo a lâmina afiada da sua faca na linha imaginária marcada pelos mamilos, aproveite e roube, através deles, minhas melhores endorfinas batidas no leite. Quero que vá rasgando a pele aos poucos, isso, sem medo, sem deixar a mão tremer enquanto me corta, sem limpar o sangue que escorre, meu último desejo é sujar os seus sapatos.
Pela dor que eu sinto você já fez duas linhas verticais, dividiu meu corpo em três, mas as doenças são muitas, são necessários espaços menores para examinar alguém com precisão, não se preocupe, estou aqui para te ensinar, vou mostrar exatamente o que você tem que fazer. Seguro sua mão para te ajudar a abrir os dois últimos talhos horizontais, o primeiro bem na crista da bacia e o outro começando logo abaixo das costelas, imagino que você esteja pensando em como elas ficariam uma delícia defumadas e regadas ao molho de churrasco, queria que tivesse me avisado da sua antropofagia antes que eu te permitisse tomar conta da minha autópsia.
Pronto, estão aí expostos os nove pedaços de mim que você desconstruiu, quero que me diga qual deles apresenta o maior grau de macicez, só não repare essa discreta distensão ali no meio, bem aonde você apoiou a mão trêmula, cansada de tanto me dilacerar, é o resultado de todo o ar que engoli junto com as palavras que tanto ensaiei, mas que fiz questão de não te entregar.

domingo, 14 de agosto de 2011

Veja bem, meu bem

Tem aquela hora do dia (ou aquele fim de semana, ou aquele início de mês) em que você não consegue olhar ninguém no olho, mas tem que olhar. É chato como a gente tem sempre que olhar os outros no olho. Nos olhos, nos dois olhos, que saco. Um dos seus olhos mirando a cara inteira de outra pessoa, de várias pessoas, de todas as pessoas, chega de pessoas! Acaba o estrabismo distorcendo a conversa, tirando o foco do assunto - que começou só pra passar o tempo - mas ninguém se importa muito desde que você não solte a corda invisível que se estende daqui até ali, entre o espaço do meu e do seu nariz, a interação social não passa de um grande cabo-de-guerra de córneas sem atletas no banco de reservas, suas pupilas têm de ficar dilatadas até o final.
Mas então tem aquela hora que eu falei, aquela hora do dia em que você não quer olhar ninguém. Nessa hora me surpreendo encarando colegas e amores através do espelho, deixo os reflexos conversarem por nós, o olho do meu reflexo olhando no olho do reflexo de qualquer-um, são projeções de luz que se compreendem sem esforço, posso ficar de costas para você e, ainda assim, te olhar, parece bonito, parece poesia, mas é só cansaço mesmo, não tem beleza nenhuma em deixar um reflexo conversar no seu lugar, no meu lugar, parece que estou sozinha no desprezo de fixar o olhar.
Detesto me colocar como única nas situações que descrevo, mas é espelho, né? Não tem jeito, querendo você ou não, eu vou estar ali. Coloco minhas lentes para corrigir a miopia, o astigmatismo e o narcisismo, mas de nada adianta. A cada olhada que dou em você demoro três outras em mim, ajeito o cabelo, arranco um coágulo de sangue em cima da sobrancelha, sangue fora de validade parece carvão, é tudo meu, mas você não percebe que só olho pra mim mesma pois quero entender como você me olha, quero saber o que pareço pra você. Mas você também parece que só se olha, que penteado mais ridículo, é o que quero dizer, mas não digo, percebo que não quer que eu me vire pra olhar meu olho de verdade ao invés do meu olho-imagem, que bom, é bom mesmo, estou de fato cansada de olhar no olho, já disse que estou naquele pedaço do mês em que não consigo me segurar em olhos, me canso mesmo, me canso fácil desse jeito, não digo isso só porque te percebo desviando o olhar, me canso de verdade, fico feliz que a gente se entenda assim, conversa com meu reflexo, não faço questão de contato visual, que inútil essa coisa de olhar, é meio óbvio que se não posso olhar no seu olho não quero olhar no olho de mais ninguém.

domingo, 31 de julho de 2011

Sodoma e Gomorra

Ofereço um pedaço do meu corpo antes de partir, nao quero dar a impressão de ser mal educada, estão todos congelados - os alpinistas - mas a sua carne eu ainda me recuso a comer. Da festa sobram pernas e braços e brigadeiros e bagaços que não me incomodo em reciclar, junto latas de alumínio apenas para ouvir seu tilintar, balanço os sacos de lixo para declamar o choque metálico, como poesia, versos feitos de barulho e de metal, o faço também para que não pensem que carrego cadáveres, ouço gritos de criança ou sirenes de ambulância, não sei mais diferenciar.
Mordi a língua tão forte que até agora não parou de doer, vai nascer uma afta, tenho certeza, melhor aproveitar para comer tudo o que tiver de salgado enquanto espero a erosão acontecer, é como faz minha avó, procura sentar nos lugares mais desconfortáveis que consegue encontrar até surgirem as hemorróidas que estouram no fim de cada mês, é melhor sentir falta de algo sabendo que muito dele já fez, sabe lá quando você vai sentir vontade de andar de carrosel ou descansar a bunda sobre canos de cobre, não vale a pena prevenir a hipertensão e viver uns anos a mais sem poder jantar na rua, sem correr em casa, nua, sem o prazer do pecado da gula.
Com a boca rachada, parece que jamais vou sentir qualquer gosto novamente, a inflamação não me permite enxergar a transitoriedade da doença e o tempo que ela demora a desaparecer acaba tornando a dor uma coisa normal. De vez em quando, é verdade, penso em olhar para trás e me deixar transformar em estátua de sal.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Só a bailarina que não tem

Todos os loucos passam me olhando atravessado, não sei se é por identificação ou se, por algum motivo, eu os deixo assustados, tão pretensiosos esses homens que passam solitários, prefiro reparar nos que estão acompanhados. Com lápis e papel sustento os olhares de quem caminha no calçadão, às vezes aparentam ter mais medo do que eu de serem observados. Mas essas roupas de ginástica também não favorecem o corpo de muita gente. Definitivamente não favorecem a senhora, com essa calça lilás e blusa listrada.
Mando mensagens telepáticas para que essas pessoas levantem e saiam do meu lado, não acredito que querem puxar assunto, será que desaprendi a fazer cara de louca? Ouço a música bem alta para tentar incomodar os outros e quase estouro meus tímpanos, no jornal apareceria como a lastimável explosão de mais um bueiro, apenas os incovenientes ao meu lado teriam visto gás e fogo escapando do meu ouvido interno.
São oito horas da manhã e os turistas já estão enfileirados para tirar fotos com o horizonte de smog e o copacabana palace coladinho no rosto, talvez eu deva ir até lá avisá-los de que é apenas um hotel (no caso, um hotel no qual a maior parte deles jamais poderia se hospedar, mas ainda assim, é só um enorme bolo de concreto enfeitado).
Fujo de casa, sento na praia, passo quantas horas for preciso imaginando a vida de estranhos suados, transformo jovens atletas e aposentados em minotauros, quero apenas desviar da vontade de rastejar em busca de um sentimento que procuro desesperadamente despertar em alguém. Sair de casa somente não tem me adiantado mais, porém não sei aonde encontrar a pessoa que vai abrir para mim as portas de si mesma e permitir que em seu coração eu vá me refugiar, na minha agenda telefônica que, certamente, não está, tantas as vezes que já redisquei cada um dos números gravados para confirmar que eu realmente não sou aquela pela qual alguma delas gostaria de se apaixonar.
Eu costumava pensar que era alguém montado em casco de tartaruga que me levaria para casar, estivera matando dragões com faquinhas de patê, por isso a demora, agora apenas tomo o cuidado de sentar com as pernas levantadas para que os cachorros que andam sem coleira não me tomem como parte dos bancos de cimento e resolvam levantar as patas para, em mim, urinar.
Na minha caixa de música estão todas as catástrofes que, por descuido, Pandora deixou escapar, não percebem a melodia desafinada e dançam, a noite inteira, acompanhando os movimentos da bailarina de perna quebrada, ninguém se lembra de me trazer a cola para tentar consertá-la.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Como no cinema

O velho sem uma perna andando de muletas no fundo da sua foto, para sempre ficará sem perna, com um clique você imortalizou a sempernice do velho em código binário e, pior, colocou-o em exposição no papel de parede do seu computador, junto com suas próprias deficiências. Você nem saiu tão bem assim na foto, liberte esse pobre velho incompleto, quem sabe ele só precisa de um pouco da sua energia para competir nas paraolimpíadas.
Vendo fotos você nunca vai imaginar que aquelas pessoas já estiveram peladas na cama de uma outra - na minha cama - espalhando pelo chão de um quarto - do meu quarto - essas mesmas roupas que as deixam tão comportadas no retrato. São esses flashes puritanos que paralizam a inquieta inocência no lugar e colocam-na de volta aonde a sociedade exige que ela deva estar, nos sorrisos de cheese e abacaxi, em todos os seus dentes, tão inocentes para todos que os vêem nos álbuns, menos para mim, que há pouco ainda os sentia furiosos, arrancando enormes pedaços de carne dos meus quadris.
Você nem pode imaginar quantas foram as vezes, por essas fotos ingênuas e pintadas de xadrez, tantas perturbadas vezes, em que não aguentei ficar parada esperando suas respostas e, através de lentes, te comi, não preciso mais de garfo e faca, te como com as mãos, como em um romance.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Procura-se

Sempre pensei como adulto, sempre sofri como adulto, mas agora, relendo alguns diários e textos antigos, vejo páginas e mais páginas contendo apenas pensamentos de criança, que criança é essa que aparentemente eu fui e nunca conheci?
Fiquei tentando encontrar uma explicação para entender essa distância tão grande entre o que eu achava que sentia e o que eu sentia de verdade, ou o que eu deixava transparecer através de palavras coloridas com canetas hidrocor, cada letra de um tom diferente de rosa, e só consegui pensar em uma coisa: talvez a intensidade de algumas idéias e pensamentos seja tão grande (para mim e para qualquer um) que quem os têm em mente acaba por sentir-se mais maduro e mais adulto apenas pelo fato de tê-los. Uma vez a pessoa sendo arrebatada por esses sentimentos tão assustadoramente desconhecidos e não conseguindo compreender a si mesma, ela acaba achando (como eu também acho) que aquilo só pode ser um sentimento, um sofrimento, um pensamento de adulto, já que nos acostumamos a relacionar a vida adulta com conceitos de sabedoria e maturidade e compreensão de certas lógicas e fatos que uma criança jamais teria a capacidade de entender, a incompreensão, portanto, nos leva a amplificar o sofrimento. Porém, quando tudo o que parece tão grande dentro da cabeça é transcrito para o papel, podemos perceber toda a imaturidade inoculada em lágrimas para a qual estávamos cegos, lendo você consegue avaliar as próprias palavras como se fossem de outra pessoa e, bem, as outras pessoas sempre parecem tão infantis e egocêntricas, não é mesmo? Sim, elas são, e você também é, e eu também sou, mas é impossível perceber isso se não nos olharmos de fora e não nos abrirmos para a análise crítica e impiedosa de nós mesmos, nós que, infelizmente, insistimos em sofrer como adultos por coisas de criança.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Suco de gente

Dizem que se você andar na rua olhando para as costas de uma pessoa por tempo o suficiente, ela, eventualmente, vai se virar para te olhar. O que aconteceria? Como as outras pessoas sentiriam nossos olhares sem nos ver? Alguma radiação sairia do fundo das pupilas (dilatadas pela sombra das cabeças) para o corpo do outro ou o quê? Imagino que a presença de um estranho colado na sua traseira incomode ou, no mínimo, instigue a curiosidade, ou qualquer coisa que deixe de fora a filosofia e a psicanálise. Acho difícil opinar pois, desde que li essa teoria, tenho me sentindo um tanto quanto invisível, passo o dia encarando nucas e ninguém nunca, em nenhum momento, sentiu a necessidade de olhar para trás - e me ver ali.
Observei junto com isso o limpar de lágrimas com o polegar, "Não fique assim, vai dar tudo certo" e você vai e entrega sua mão como pára-brisa de rostos tristes, mostra-se próximo, mostra-se sem receio de contarminar-se com os sentimentos alheios, apenas mostra pois, quando o outro menos espera, lá está você pondo-se a esfregar de volta os dedos enlagrimados nas costas do mesmo indivíduo cujas lágrimas acabou de limpar, devolve esse suco de sentimentos antes que suas próprias mãos os absorvam, e cria um círculo de tristeza em volta da pessoa que não consegue ver para onde suas lágrimas escoam, invisíveis são as lágrimas, invisíveis são os pequenos gestos - se vistos com uma lupa podem até mesmo ser inexistentes.
A tristeza e a compaixão forçada que frequentemente nos sentimos obrigados a unir em uma mesma cena, para mim, são o mesmo que o despreocupado que sai pelas ruas e o outro que vai encarando seu pescoço por trás, o de trás é lágrima o da frente é polegar, se a lágrima te encara por tempo demais você se sente impelido a limpá-la com esse mesmo polegar. Talvez, então, eu não seja invisível, apenas não tenho lágrimas, ou nunca consigo me fixar na mesma nuca pelo tempo que é preciso para que ela olhe para trás - e me veja ali - quando ela se vira eu já não mais estou, fui atrás de outro pescoço, persegui outro transeunte sem rosto até a porta de casa, encarei outro polegar por mais de um segundo esperando que ele entendesse e pegasse um colírio e me criasse lágrimas - para depois limpá-las.
O tempo suficiente de cada nuca (para se virar) e de cada polegar (para servir de toalha) são constantes, me parece, mas as lágrimas secam e quem anda na rua nem sempre vai para o mesmo lugar, polegares e nucas precisam ser mais rápidos na hora de secar lágrimas e olhar para trás, antes que as lágrimas evaporem e chovam novas dores em cima de quem não se ofereceu para arriscar-se a guardá-las nas veias, antes que quem anda atrás se canse, ou se distraia com um outro pedestre ou com um saci - olhe para trás enquanto ainda estou aqui.

sábado, 11 de junho de 2011

Solidão: modo de usar

vamos esconder
essa falsa solidão
ou correr para o vazio
e escolher não ter lugar

lá se vai o herói
entre o crime e a loucura

vive a distância
e não calcula os prejuízos
da luta para provar
quem precisa menos um do outro

se dissolve
em água quente
e na tragédia de Brás Cubas
e no fim desse namoro
que não termina nunca

só sobra eu e você (e a solidão)

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quarta bulha

O ciclo cardíaco tem duas fases, uma de contração e outra de relaxamento, eu te amo, ele contrai, eu te esqueço, ele relaxa, você vai embora, ele contrai, ele se debate, ele quer sair pela boca e ir bater na sua porta, você não existe, ele relaxa, ou bate normal, em tuns e tas sem compromisso, em tuns e tas daqueles tempos de carnaval. Mas aí você existe, ou existiu, não sei se existe mais já que não tenho coragem de discar o seu número, que apaguei da agenda mas ainda sei de cor, e não sei como avisar ao coração que ele precisa relaxar só mais uma vez, para deixar um novo sangue entrar, um sangue que não contenha mais hemácias carregadas com aquele gás carbônico que roubei da sua respiração, esse sangue com seu ar não quer sair, e meu coração vai se dilatando para me manter viva, crescendo e tentando te abrigar, você que luta tanto para não ficar ali.
Em uma radiografia, os médicos ficam loucos, o coração ocupa metade do meu corpo. "Não percebi que estava crescendo tanto, doutor, que horror!". Mas veja só, que engraçado, agora são quatro as vezes que meu coração bate por você.
Mas então, na sua falta, preciso me contentar em cheirar pétalas de rosa, borra de café e alguma cocaína, não entendo por que você não tenta se esconder em mim, ao invés de fugir, ao invés de mandar que eu me cale quando peço-lhe que fique, por favor, e deixe que eu te mostre o desvio de septo que construí para guardar o seu rancor.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Parede feita de chão

A parede da minha sala é feita com pedras do chão da rua. Duas avenidas e três praças me encaram na vertical, com seus pedaços encaixados, confundindo cola com gravidade.
Às vezes me esqueço que é parede e erro o caminho. Ando em direção à porta e, de repente, me encontro no teto. E, então, despenco, sem graça, segurando o cós da calça enquanto vou recolhendo as unhas e dentes que perdi na queda. Por favor, não vá me dizer que eu subi na parede porque quis.
Perdi as profundidades, e a realidade eu comi com um pão. Me desequilibro nas pedras, rachadas e mal coladas. Me perco em casa. Enfio o dedo na tomada e tropeço no fio da televisão. Vejo os olhares tortos de quem come com calma na mesa da cozinha. Talvez a casa só esteja rodando em volta de mim (ou talvez eu que esteja rodando em volta da casa).
Quero mostrar pra você o que eu vejo agora que meus óculos ficaram presos no lustre. Deixe que eu me explique antes de me mandar descer e esquentar a sopa - esquentar não, ferver - para matar até os últimos resquícios de bactérias e sentimentos e lembranças que ainda me permito guardar.
Fico de olhos fechados, torcendo para que eles não quebrem ao meio como o resto de mim. Talvez não exista mesmo mais o que falar, não agora que percorro tantas ruas entre o chão e o teto, não agora que cavei buracos por toda a cidade para me criar uma parede.
Você pode me vendar e contar até dez, me empurrar e segurar os meus pés. Não me importa mais o que faça, comigo ou com suas garotas de programa, depois que construí minha parede com pedras de rua, em qualquer lugar que eu esteja, me encontro no chão.

sábado, 30 de abril de 2011

Sopa de macarrão

E daí minha mãe me disse que eu não posso mais fugir. Da realidade, do espelho, das pessoas, da varanda. Tentei explicar que é só o que eu sei fazer, tentei tricotar uma boa desculpa para me justificar, para me aquecer, para enrolá-la. Mas ela conhece minha pobreza de argumentos, minha falta de traquejo, minha vontade de enfiar a cabeça embaixo da terra e esperar o dia terminar - ou os dias - e não me deixa falar, não me deixa sequer abrir a boca sem me alfinetar, sem martelar meu dedo mindinho com o passado.
Meu passado cheio de flores de plástico e chocolates derretidos. Cheio de camisetas suadas e mãos geladas por baixo da mesa, de passeios pela praia e conversas abafadas por música alta, de contas de celular que vou pagar até me aposentar. Histórias transbordando de "quases". Quase não fugi. Mas fugi.
Meus dedos indicadores são calejados de ansiedade, de impaciência. Minha mão inteira é áspera de uma vida me esfregando em fronhas, arrastando a cama de um lado para o outro tentando fugir da insônia. Fugir me deixou áspera, eu acho. "Posso parar a qualquer momento" e lá estou eu fugindo de novo. Da análise, do telefone, do reencontro de colégio, do amor, do merthiolate que arde, de mim.
Deixo que as pessoas erradas abram meu coração. Até olhei no livro do plano de saúde, mas quando cheguei pra cirurgia faltava o anestesista. E eu fugi quando senti o primeiro talho do bisturi. Confundiram morfina com soro fisiológico e me cortaram mesmo assim. Chego em casa sangrando e mostro o corte que trago no peito, bem limpo, bem fácil de costurar, mas minha mãe pega a linha preta - a da minha cor acabou - e costura um grande mapa em minha pele, o mapa de onde eu não devo mais ir? Ou o mapa para onde devo fugir? Não sei, fechei os olhos nessa hora, nem quis saber o significado. Só sei que transformo amor em passado, como quem coloca caldo demais no macarrão e o transforma em sopa.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Salão de festas

No meio do salão vazio, o rapaz a segurava pela mão, fazendo-a rodopiar desordenadamente para todos os lados, agarrando-a como se fosse um saco de batatas entre um movimento e outro.
A platéia de um só membro a observava de longe, dispensando comentários desnecessariamente ofensivos aos outros bêbados ali sentados, comentários maldosos recheados de inveja ante um desapego que jamais alcançaria - sóbria. A platéia era apenas eu, ou assim parecia. Era, na verdade, um lugar que não exigia espectadores, aonde aqueles que se colocavam nessa posição - de espectador - eram desprezados com simpatia pelos que repetidamente compravam alegria no bar. A sobriedade, entretanto, me obrigava a isso, a observar, a criticar, a querer também perder a consciência, as inibições e até mesmo o bom senso, se não fosse pedir demais.
E ela ali, irrefreável, envolta em sua soberba gordura, sentindo-se uma modelo magrela em um provador feito de espelhos, travestindo-se de Kate Moss em um par de jeans minúsculos, deixando a auto-confiança encolher seus braços e enxugar sua imagem que, do contrário, ocuparia todo o salão, mesmo esse estando vazio, mesmo esse estando desconfortavelmente livre da possibilidade de esbarrões.
Me sentiria mal por ela, tão apertada em sua blusa de malha, tão enormemente sem jeito e sem graça. Me sentiria mal, sim, se não estivesse ocupada demais sentindo inveja.

domingo, 10 de abril de 2011

Sem bateria

A tela preta engordurada de tanto passar os dedos. Reflete a luz da televisão, reflete meus olhos caídos, reflete o ninguém que lembrou de mim naquele momento. E ele treme, o celular, digo. Deixo cair, a bateria para um lado, o aparelho para debaixo da cama, o coração para dentro do estômago.
Vou recolhendo os pedaços, remontando as peças, a única que não encontrei foi minha artéria aorta que se desprendeu quando a tela piscou, mas isso não importa agora, depois eu procuro melhor, deve estar no vão do sofá de novo (todas as coisas perdidas, de um jeito ou de outro, acabam indo parar no vão do sofá). Só preciso reconstruir o telefone, ligar de volta antes que pensem que não quis atender. Que você pense, claro, se for outra pessoa não me importa o que pense.
Vejo a abertura patética, de jujubas coloridas, que meu celular exibe ao ligar. Uma tentativa de adoçar a vida essa minha fixação com balas, disse minha psicóloga uma vez. Deixei de acreditar na psicanálise, mas ainda acredito quando você diz que vai ligar. Você diz que vai ligar e acho que só pode ser você. Deveria ser.
- Pai, você pode parar de me mandar mensagens que a bateria do meu celular está acabando?
- Mas filha, eu só queria falar do seu presente.
- Depois você me conta, você sabe que detesto aniversário.
- Não posso falar agora já que estamos nos falando?
- Mas já não disse que a bateria está acabando? Estou esperando uma ligação.
- Ligação importante?
- Importante pra mim, oras. Pai, por favor, desliga esse telefone que eu não estou encontrando o carregador.
- Posso te ligar amanhã, então?
- Meu deus, amanhã a gente vê, desliga isso que está com dois pontos agora! Olha o que você fez, tinham três pontos antes de você ligar!
- Tudo bem! Eu desligo, parabéns viu, eu te amo.
- Tá, tá, tá. Um beijo, então.
E desligo. Desesperada com os dois pontos piscando no alto da tela, confundindo os estalos do ventilador com uma nova mensagem na caixa de entrada. Mas nunca tem mensagem. Quer dizer, às vezes até tem, mas nunca suas.
Mas está tudo bem. Mesmo que você não ligue, hoje ou qualquer outro dia, mesmo que você gaste sua bateria com outras pessoas, eu vou continuar guardando esses dois pontinhos pra você. É bom que assim não ocupo muito da sua noite, e aí você não enjoa de mim, te roubo apenas uns minutinhos, deixo os outros pra você gastar com quem tenha mais bateria pra você. Com quem tenha menos quilômetros de distância de você. Com quem tenha você, e não apenas o seu número de telefone.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Sem saber

Eu disse que não sabia o que fazer. Sentei na escada de costas para o vento, deixando a franja cobrir meus olhos. Eu realmente não sabia o que fazer. Eu queria falar, ms não tinha mais o que dizer - ou tinha medo.
Olhei para o chão, cheio de terra, cheio de marcas de pés. Fiquei olhando. Olhei até que nada mais consegui ver. Tentei levantar mas tinha esquecido como, então continuei do jeito que estava, com os cabelos na cara sem enxergar. Continuei do jeito que estava até que ele se irritou comigo. Se irritou com a minha preguiça, com a minha falta de vontade.
Ele me mandou sair dali, mas eu não queria, eu não sabia para onde ir. Ele continuou falando, mas eu não conseguia mais ouvir - ou eu não queria.
Eu vi a luz da rua acender. Nem vi quando o céu apagou. Ele deve ter visto, mas eu não vi.
A escada é de todo mundo, não sei porque ele me manda sair. Não tenho mais paciência para perguntar - ou talvez me falte a voz - e ele também não se incomoda em me explicar. Eu continuo sem saber, e continuo ali.
O frio começa a me incomodar, ele está de casaco e se recusa a me emprestar, talvez eu devesse mesmo sair dali. Ele acha que saí porque ele mandou, tentei dizer que foi o frio, mas ele não acreditou - ou não me ouviu.
Saí. Logo depois quis voltar, mas não me lembrava como e ele não quis me ensinar. E foi embora. Foi embora sem me ajudar.
Fiquei sozinha, agora de frente para o vento, com os cabelos voando e as bochechas rosadas pelo frio. Queria que alguém estivesse ali, mas não sabia quem chamar - ou esqueci. Então fiquei ali, esperando alguém passar. E continuo esperando. Estou cansada de esperar.

domingo, 27 de março de 2011

Leite com biscoitos

E nesses tempos tão estranhos, esmigalho os biscoitos com as mãos e os jogo no copo. Assisto enquanto eles se desmancham e vão tornando o leite em volta cada vez menos branco. Como de colher. Colher de café para fazer durar mais. Sempre quero que dure mais.
Aproveito a liberdade da solidão para não me importar em pegar um guardanapo quando sinto o leite escorrendo pelo canto dos lábios. Limpo com as costas das mãos e seco na fronha do travesseiro. O travesseiro no qual encosto a cabeça para dormir.
Você nunca pode comer na rua do mesmo jeito que come em casa. Você não deveria compartilhar esses hábitos tão particulares também, mas às vezes você conhece algumas pessoas que parecem entender, e então você fala. Você conta suas nojeiras mais secretas, sem imaginar que, aqueles com olhos tão compreensivos, nunca comeram uma coxinha de frango sem usar talheres.
Pessoas que fingem te entender, mas que não conseguem disfarçar a expressão de asco ao te ouvir.
Na rua você tem que estar com o cabelo penteado, com as roupas sem manchas, com os cotovelos longe da mesa e os garfos e facas alinhados em volta do prato. Na rua você tem que ser alguém bem educado, bem resolvido, bem vestido.
Por isso, não quero te encontrar em um restaurante. A rua tira um pouco do que cada um é de verdade. Eu já separei uma enorme pilha de filmes para assistirmos, mas você vai ter que parar de me oferecer seus lenços para eu limpar meu queixo sujo de molho de tomate. Estamos em casa, de pijamas listrados, com golas duras de pasta de dente. Mangas compridas limpas não têm a mesma graça. Usar talheres em casa não sacia a fome. Você dizer que me entende pelas fotos que mostrei é hipocrisia. Você não vai me entender até que seja obrigado a espanar as migalhas de pão da minha cama com o antebraço. Por favor, senta, deita, se enrola na coberta e deixa que amanhã o lençol já vai estar seco.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Se você não me conhece

Se você não me conhece até agora significa apenas que não tem frequentado as confeitarias certas. Chegue no fim da tarde, arraste a cadeira vazia na minha frente e sente-se sem pedir licença. Eu não vou me incomodar em dividir meus biscoitos amanteigados com você, sempre peço o suficiente para duas pessoas. Meu café já está esfriando de tanto esperar. O garçom sempre se esquece de me trazer adoçante, resolvo deixar amargo, a culpa que o pratinho de biscoitos desperta em mim impede que eu despeje saquinhos de açúcar na minha caneca. Também não gosto da bagunça de papel rasgado na minha mesa, melando a capa do meu livro, convidando formigas a subirem nas páginas.
Espero que você não se importe em me esperar terminar esse capítulo. Detesto interromper a leitura no meio de um parágrafo, sempre acho que é no final daquela frase que estou lendo que está a informação mais importante da história, me odiaria se tivesse que pegá-la pela metade uma próxima vez.
Eu tenho algumas revistas na minha bolsa, posso deixar em cima da cadeira, talvez assim você se sinta mais à vontade para chegar perto de mim. Peça um café para minha boca não ser a única amarga durante a conversa, me olhe nos olhos mas não repare nas minhas olheiras, invente uma história que não aconteceu se lhe faltar assunto, eu prometo que não vou dizer nada se perceber que você está mentindo. Eu minto bastante também, espero que você goste de mim logo de cara para acreditar em todas as minhas mentiras, rir de todas as minhas tentativas para te impressionar, pegar na minha mão pálida de nervoso antes que minha pele comece a sangrar de tanto eu coçar.
Espero que sua letra seja feia e que me escreva cartas, que cante mal no chuveiro e sussurre canções antigas para me fazer dormir, que queime ovos fritos e seja do tipo que só come pizza com catchup. Eu não faço questão de conversas inteligentes, passo o dia inteiro me fingindo de culta, gostaria de ouvir alguns erros gramaticais ao chegar em casa, trocar alguns solecismos durante o jantar, cuspir migalhas de pão no seu jornal enquanto você me conta do seu dia.
Você não me conhece ainda, é verdade, mas eu não sou difícil de encontrar. Estou sempre deitada na varanda ouvindo rádio, tentando te escrever um poema, logo para você que eu nem sei o nome, pra você que fica entrando em bares e botequins e nunca pede um pão de queijo no balcão da loja em que eu estou sentada.
Eu vou ler mais um capítulo, sempre olhando por cima dos óculos para não perder o momento em que você entrar. Prometo fingir que não percebi que era você quando você entrar.

terça-feira, 8 de março de 2011

Ateísmo emocional

Quase nunca me interesso por alguém. Gostar das pessoas nunca foi um processo natural pra mim. Sou desajeitada para fazer carinho. Minha mão ou pesa demais ou fica leve a ponto de ninguém sentir. Sou dura para dar abraços, nunca sei se meus braços devem ir por cima ou por baixo. Sempre acabo sentando na cadeira em frente em vez de me encostar ao lado para conversar de perto. Minhas piadas são sem graça e meus comentários desnecessários.
Talvez eu fique nervosa, talvez eu queira impressionar demais, ou talvez eu simplesmente não me importe.
Não existe muito espaço na sociedade para pessoas que não se importam. Não se importar corresponde ao não acreditar em Deus no mundo dos sentimentos. Se eu precisasse traduzir essa minha falta de interesse de alguma forma, diria exatamente que sou uma agnóstica do amor. Não me digo atéia pois, assim como em relação à questões espirituais, não descarto totalmente a possibilidade de que exista, mas sim, se houvessem apenas dois lados, o do crer e o do não crer, eu ficaria com o que eu chamo de ateísmo emocional.
O grande problema é que os ateus são parte de uma das minorias que mais sofre preconceito nessa sociedade predominantemente crente em que vivemos. Ateus sofrem mais repulsa do que prostitutas e usuários de crack (sério) e, dessa forma, não seria diferente em relação aos que não acreditam no amor. Se Deus é amor, como todos já ouviram dizer por aí, você não acreditar nesse último o torna alguém tão desprovido de caráter, perante a sociedade, quanto aqueles sem religião.
Demorei muito tempo para sair desse armário da descrença. Mais pela falta de argumentos para me explicar do que pelo medo de julgamentos. Sim, mea culpa, eu deixei de acreditar no amor sem dá-lo muitas chances. Mas, hoje em dia, não me adianta muito ouvir palestras sobre a pessoa certa e sobre a beleza de se construir um relacionamento. Está tudo trancado na minha grande caixa de dúvidas que guardo embaixo da cama e que torço para que algum homem do saco leve por engano. Algumas pessoas simplesmente não tem tantas chances para dar.
Eu ainda estou aberta a me apaixonar, assim como estou aberta à possibilidade de Deus me chamar pra ter uma conversa numa clareira no meio do deserto para me fazer acreditar nele, já disse que não sou xiita em relação a nada. Porém, tudo para mim parece utópico demais, idealizado demais, enjoativo como um vidro de cereja em caldas.
Me interesso nas pessoas, nas suas histórias, nas metáforas e outras figuras de linguagem que elas têm para me oferecer, porém é difícil eu me interessar por alguém. Gostaria que ninguém me dissesse no que eu devo ou não devo acreditar a não ser que tenha como me provar errada. Espero realmente que alguém me prove errada.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Sinestesia

Músicas que ficam com cheiro de gente. Acordes que parecem envolvidos em uma nuvem de perfume conhecido, aquele perfume que um dia já ficou grudado no seu travesseiro. Talvez nem seja perfume, talvez seja o cheiro da pele, isso, o cheiro da pele que se acostumou com as fronhas e lençóis e, por dias, semanas, talvez meses, ficou ali. O cheiro que ficou ali até que você tivesse coragem de trocar a roupa de cama. Trocar a roupa de cama é o momento em que você de prepara para se libertar daquele cheiro, talvez nunca mais senti-lo novamente. Você não espera que ele vá estar em suas músicas também. Não espera ouvir um cheiro, sentir uma música pelo olfato, quase tateando as cifras através de lembranças.
Ensaboar não adianta, o cheiro não está em você, ele faz parte de você. Digo isso com a pele esfolada. Achei realmente que estava em mim. Quis deletar as músicas. Essas músicas insuportavelmente cheirando a gente. Gente mofada, guardada, amassada.
Ouço o cheiro como se o quisesse de volta na gola do meu pijama. Nem uso mais pijama. Parece, na verdade, que o quero em todas as minhas roupas.
Quero mesmo é arrancar um pedaço da música. Rasgá-la como um vestido velho e guardar no bolso. Guardar no bolso e nunca colocar o pedaço de pano com cheiro de pele para lavar. Já lavei uma vez. Não posso correr o risco de perder seu perfume na água corrente de novo. Mesmo que ele esteja apenas em forma de música, mesmo que ele nem exista mais, mesmo que você esteja usando outro perfume agora, que seu cheiro esteja diferente, não me importa. Esse cheiro é meu de novo, se é que já foi meu um dia.
Me contento com a melodia da voz de um cantor qualquer, me contento com a cadência quebrada enquanto não posso ter aquele cheiro velho nas minhas roupas novas, me contento em ouvir palavras que já decorei faz tempo com cheiro que só agora percebi que estava ali, ouvir palavras cantadas em voz rouca com cheiro de você.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Insensata coxinha

Memória aleatoriamente selecionada pela mente ociosa que não me sai da cabeça. A menina que tirava o frango de dentro das coxinhas antes de comer. Todo intervalo ela comprava uma generosa quantidade de coxinhas (muito mais do que eu conseguia comprar em bolinhas de queijo com meus três reais da merenda) e sentava no canto do corredor enquanto conversávamos para dissecá-las, dilacerá-las, tirar o que as tornava coxinhas.
Confesso que ficava com raiva. Falava mal do seu jeito de comer coxinhas pelas costas e toda vez sugeria que comprasse outro salgadinho já que, obviamente, não gostava de coxinhas. Ela insistia que gostava do sabor que o frango deixava na massa da coxinha. Inaceitável, na minha opinião. Você tem que amar a coxinha por tudo o que ela é, não pode simplesmente pegar sua casquinha crocante e desprezar seu conteúdo macio e talvez não tão apetitoso. Além dessa nada inspiradora metáfora, eu tinha raiva porque era meio nojento, imagine os frangos espalhados, deixando o papel e os dedos engordurados, de forma que, toda vez que destruía uma nova coxinha, ela esfregava o frango que ia ser desprezado na borda do saquinho e em seguida lambia os dedos, criando um ciclo de frango, gordura e saliva nada atraente de se observar. Eu sentia que não era obrigada a presenciar tal cena impublicável em um momento tão etéreo do dia quanto a hora do recreio.
Além disso, nessa época da minha vida eu ainda não tinha aprendido a me apaixonar pelas esquisitices de cada um. Não que olhando para trás agora eu me consiga definir isso como uma mania charmosa, claro, mas esse é um caso muito particular, na maioria das vezes consigo sim transformar TOC em charme. Enfim, você só aprende a amar o próximo pelos seus pequenos defeitos depois de uma determinada cota de bullying que sofre na vida e, na quarta série do fundamental, eu estava do outro lado do palco do sofrimento escolar, inventando apelidos e colando papel cartão em mochilas alheias.
Pois é, nessa época, se eu fosse uma coxinha, eu seria aquela última da bandeja, que estava tão apetitosa quanto as outras mas que, como ninguém comeu, ficou murcha e perdeu o dourado cativante que faz com que as pessoas queiram comprá-la.
No ginásio eu estava num estágio mais avançado ao de uma coxinha murcha, eu me tornei um risole de fim de festa. E foi então que aprendi a observar mais as pessoas. Foi então que aprendi a me apaixonar exatamente por tudo aquilo que se tornava motivo de piadas para os outros pré-adolescentes sedentos por uma humilhação pública. Foi então que comecei a não julgar alguém apenas por achar estranho a forma como lida com suas coxinhas.
Não é justo rir por detrás de portas de madeira, não é decente definir o sentido de ausência como padrão para todos. Talvez a falta do frango fosse a plenitude da sua coxinha, e talvez eu até esteja falando isso sem um pingo de ironia...
Ou talvez eu esteja superanalisando um comportamento mimado de filha única de colégio particular da zona sul do rio de janeiro como algo realmente digno de sequer ser analisado. Enfim, eu teria comprado bolinhas de queijo.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Silêncio pra falar de amor.

Eu não sei falar de amor. Não acho que saiba viver o amor também, mas falar dele é ainda mais difícil. O descontrole, a falta de foco, o estômago petrificado. Tudo muito desconfortável para ser traduzido em palavras.
Estranho como algo que provoca tantas sensações desagradáveis possa ser tão desejado. Desejado pelos outros. Eu nunca desejei o amor. Nas minhas brincadeiras de boneca mais inocentes ninguém jamais via Barbie se casando com Ken. Minhas Barbies eram promíscuas, alcoólatras, travestis, deficientes físicas, tudo, menos apaixonadas. Minhas coleguinhas de play ficavam horrorizadas, convidavam minha Barbie para um cruzeiro no novo barco de plástico que ganharam de natal. Um cruzeiro que era para ser de sol e água de côco e eu transformava em um transatlântico para tráfico de prostitutas, mais pela minha falta de compreensão da palavra TRANSAtlântico do que por qualquer outra coisa, mas ainda assim, um grande desvio.
Logo pararam as brincadeiras, saíram as Barbies e começaram os flertes no play com os meninos que voltavam suados do futebol. Eu achava legal, achava bonito correr com garrafinhas de água para recebê-los fora da quadra, mas, quando as amiguinhas começavam a escrever cartinhas de amor e dizer o quanto estavam apaixonadas, eu me colocava a fazer colares de miçanga pra vender na porta do supermercado da rua. Ficava desconfortável com aquelas demonstrações de amor tão escancaradas, tão sinceras, tão fora da minha realidade.
Isso começou a mudar no dia que resolvi mandar meu primeiro cartão para um menino. Eu não gostava dele, mas queria fazer parte de todo esse clube de meninas que morriam de amores pelos cantos. Era seu aniversário e ele tinha ido na casa da minha avó para ter uma aula particular de matemática ou algo assim. Achei que ia ser uma ótima idéia lhe mandar um cartão com um QUIZ: "VOCÊ GOSTA DE MIM? ( ) SIM ( ) COM CERTEZA ( ) MUITO". Coloquei em cima do seu caderno e me escondi atrás do sofá (pois é), apenas para desejar morrer quando ele me devolveu o cartão com uma nova opção criada a caneta e marcada de outra cor para reforçar a idéia "(x) NÃO". Minha primeira rejeição. De caneta vermelha ainda. Meio triste que ele achou que precisava usar vermelho. Enfim, não preciso nem dizer que fiquei apaixonada. Pedia pra minha avó tirar fotos dele sempre que ia ter aula e guardava todas no meu diário, escrevia seu nome de batom no espelho, tudo isso. E então, no dia que ele resolveu que ia me chamar pra tomar um sorvete eu simplesmente... brochei. Disse que não gostava mais dele, e não gostava mesmo. Nunca tinha gostado. Estava encantada pela idéia de não poder tê-lo pra mim, nunca tinha sido amor, eu só achava que era. Era cedo, eu ainda podia ficar confusa quanto ao conceito de amor, né?
Mas depois disso, minhas inadequações e insucessos amorosos só foram crescendo e se desenvolvendo, permitindo que minhas inseguranças e neuroses se multiplicassem como gremlins atirados na água. Continuei confusa em relação ao amor.
Acabei descobrindo o que era. Acabei vivendo com algumas borboletas no estômago por tempos. Apesar de não ter sido o que eu queria, fui obrigada a viver com elas. E ainda sou. Me apaixono por quem não quero e jamais desejo aqueles que demonstram gostar de mim de alguma forma. Mas ainda não sei explicar o que é. Ainda não sei falar sobre ele, ainda preferia que ele não existisse, ainda acho mais bonito viver uma série de desventuras sexuais do que uma doída história de amor (sempre é meio doída), mas ele está aí, todo dia, brincando de me fazer de boba.
Não sei falar de amor, talvez nunca aprenda, mas sei sonhar. Nossa, quão pateticamente utópica e ridiculamente idealista foi essa frase? Mas é verdade. Sei viver o desconforto com altivez dentro do meu inconsciente. Sei acreditar que um dia vou parar de acreditar na rejeição como um gatilho para o amor. Já aprendi a colocar minhas Barbies para dormir de conchinha depois de longa viagem no mar. Só me falta alguém que não cobre de mim o que eu não sei, que é falar. Preciso de alguém que aceite meu amor torto sem perguntas, sem cobranças, sem toda a carga emocional dessa realidade chata e sufocante.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Bala de tamarindo

Na rua em que eu moro tem um homem que vende balas de tamarindo. Ele anda numa cadeira de rodas e os saquinhos de bala ficam espalhados numa bandeja de madeira em seu colo. Nem sempre morei nessa rua, mas em todos os meus (quase) vinte anos lembro de, frequentemente, passar por ele, no mesmo lugar, com os mesmos cabelos brancos, com praticamente a mesma quantidade de saquinhos na bandeja.
No início eu era muito pequena para até mesmo verbalizar um suposto desejo por balas de tamarindo, mas meu pai passava pelo moço da cadeira de rodas e comprava um ou dois saquinhos, sempre trocando algumas palavras simpáticas e dando-lhe umas moedas a mais do que o necessário. Ela estava longe de ser minha bala preferida, sempre deixando a língua meio escura e com um gosto metálico no final, nenhuma criança escolheria essa bala como primeira opção. É o tipo de coisa que você come quando se esgotam todas as alternativas e o desejo por algo doce supera qualquer inibição gustativa.
Entretanto, eu só saia de carro à noite com meu pai pelas balas de tamarindo. Por todo o ritual de passar por aquela rua, de cumprimentar o cara na cadeira, de observar como ele deslizava habilidoso por entre os carros para chegar próximo à janela do carro quando via que era meu pai quem estava dirigindo. Vez ou outra ele até enfiava a cabeça timidamente dentro do carro pra me olhar encolhida no banco de trás, esperando que meu pai jogasse o saquinho no meu colo para que pudéssemos voltar pra casa.
Balas de tamarindo e churraquinhos de gato nos arcos da lapa, essas eram minhas pequenas paixões infantis. Eram as coisas pelas quais eu ficava a semana inteira esperando. Os churrasquinhos, apesar de mais deliciosos, não tinham nenhum vendedor bacana que me chamasse a atenção, o legal era mais o clima da lapa que, naquela época, não tinha nem um pouco da fineza que hoje já consegue se encontrar num canto ou outro do bairro. Eram só travestis e prostitutas andando em meio à fumaça do churrasquinho, esperando o que quer que fosse na esquina enquanto eu descia do carro pra pegar nos palitos quentes e engordurados e lançar olhares curiosos diretamente do glamour do meu guarda-roupa do Walt Disney.
Hoje em dia não como mais churrasquinhos na lapa. Hoje em dia, na verdade, minhas memórias da lapa são um tanto quanto embaçadas (fumaça de churrasquinho, mãe, nada de álcool). Porém, o moço da bala de tamarindo ainda está aqui, na minha rua, todo dia. Me assustei logo que me mudei e voltei a passar por ele, tão esquecido no meu passado, tão exatamente igual ao que eu me lembrava. Juro que acho que ele me reconheceu, e me reconhece toda vez que passo de óculos escuros fingindo que nunca comi uma de suas balas de tamarindo.
Odeio pensar que ele me reconhece e vê o quanto eu mudei da menina do banco de trás do escort vermelho, o quão distante eu estou de tudo o que aquela criança era. Odeio pensar que ele consegue enxergar essas mudanças e que pode, assim, perceber o quão nada ele mudou.
Deve ser tão chato quanto ser uma árvore, ou um poste de luz, ou um poodle de dezessete anos com catarata nos dois olhos, ser o cara da bala de tamarindo. Deve ser chato e assustador ter que ver pessoas crescendo e mudando e vivendo enquanto você se mostra a exceção da regra das mudanças da vida e só fica ali, dia após dia, vendendo balas de tamarindo. Socializando com um ou outro executivo solidário, mas só se preocupando em arrumar os saquinhos na bandeja e lubrificar as rodas da cadeira. Não mudar deve assustar muito mais do que mudar o tempo inteiro.
Estranho que digo isso no meio de uma empatia extrema pelo moço da bala de tamarindo. A cada dia que passo pelas costas de sua cadeira consigo me identificar mais. Nossa, se me perguntassem há uns anos atrás eu jamais diria que um dia me colocaria no mesmo microcosmo que o moço da bala de tamarindo. Bem bittersweet mesmo, linda bala de tamarindo que de bala foi promovida à metáfora.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Quem me dera ser uma formiga

É muito difícil ser gente nesse mundo. Muito mais fácil seria ser abelha, ou lagartixa, formiga, morcego, sei lá. Difícil isso de ser obrigado a ter uma opinião sobre tudo. Insuportável essa coisa de ter emoções e ter que se preocupar com os sentimentos alheios o tempo inteiro. Sentimentos pra que? Sentimentos só atrapalham, só complicam, só fazem as pessoas se sentirem desconfortáveis e deslocadas. Se barata não fosse um bicho tão nojento diria que ela sim é feliz, com sangue frio, sem maiores preocupações além de comer lixo e aterrorizar humanos, mas não, é nojento demais, ninguém pode gostar de ser barata, nem a barata mais linda, rica e inteligente deve ser feliz sendo barata.
Muita gente que me conhece acha que eu não tenho sentimentos, pelo menos não como as pessoas ditas normais. Só porque eu costumo não pensar muito antes de falar as coisas, só porque eu choro pelo controle remoto sem pilha em vez de pelos desabrigados nas enchentes, só porque eu não sei lidar com os sentimentos dos outros expostos na minha frente. Mas isso não é verdade, eu sinto o tempo todo. Tudo. E, na minha cabeça, por mais que não seja verdade, parece que sinto mais que todo mundo. Morro de inveja de quem não sente nada.
Esses dias parei pra olhar uma linha de formigas na parede da minha cozinha. Não é possível que elas andem tão despreocupadas assim quanto parecem na linha delas, sem ter vontade de dar uma marretada naquela formiga lenta da frente, ou sem talvez querer dizer pra formiga de trás que estão apaixonadas. Quer dizer, formiga deve se apaixonar né? Deveria pelo menos, com certeza existem muito mais formigas do que seres humanos, o que torna incrivelmente injusto que, nós, que estamos em minoria, sejamos os únicos obrigados a nos apaixonar, a ter um coração, a ser inexplicavelmente estúpidos perto da pessoa que gostamos mesmo depois de todos os livros cheios de cultura que guardamos cuidadosamente na estante do quarto.
Tirando aquela confusão da história com a cigarra, e sem incluir o smilinguido na história (com formiga cristã a gente não brinca), as formigas só trabalham, são mecânicas, nascem com uma função e se dedicam a cumpri-la, até alguém pegar uma canetinha vermelha e pintar a cabeça delas pra que o pessoal do formigueiro não as reconheça mais, sem valores atrelados. Sem nada atrelado, pra dizer a verdade.
Bom, enfim, não dava pra perguntar pra nenhuma das formigas se alguma delas estava apaixonada no momento, então matei umas duas formigas pra ver o que acontecia. Deixei os cadáveres ali no meio de onde tinha que passar a antes bem organizada linha de formigas e elas ficaram LOUCAS. Sim, formigas loucas na parede da cozinha, não sabiam pra onde iam, paravam pra dar uma checada nas formigas mortas no caminho, andavam em círculos pela parede, passavam recados que eu não conseguia entender umas pras outras e, quando eu finalmente achei que elas iam se virar pra me explicar o que estava acontecendo, ou pra tirar satisfações pela minha crueldade gratuita, tudo ficou normal. Elas fizeram outra linha. Deixaram as amigas mortas ali do outro lado da parede e continuaram seguindo seu caminho. Vez ou outra uma formiga desavisada esbarrava nos destroços, saqueava a coitada que estava esmagada, roubava seus cartões de crédito, imagino eu, e voltava pra linha. Pois é, imagina se aquelas formigas que eu matei estivessem levando o leite das crianças, ou indo entregar a carta de amor pra formiga dos seus sonhos naquele exato momento. Imagina se estivessem. POIS NÃO ESTAVAM. Formiga não fica de luto, não escreve poesia parnasiana, não compra anel de noivado, não se importa se a amiga formiga da região serrana pegou leptospirose com as chuvas de verão no rio de janeiro. Formigas são espertas, comem seu coração cru se você deixar um pouquinho de açúcar de confeiteiro em cima. Não têm essa babaquice de PENSAR. Pensar só traz problemas.
O que é muito estranho, pois formigas, apesar de não pensarem, EXISTEM. Sim, todos sabem que formigas existem, menos elas mesmas. Eu acho. Meio que deve ser isso que o amigo Descartes quis dizer quando disse que ele "Pensa, logo existe". Que ele SABE que ele existe. Daí ok, não vou entrar nessa discussão porque eu não tenho nenhuma graduação em filosofia e não acho que ninguém esteja interessado nas minhas teorias existenciais.
Só acho que a gente paga um preço alto demais por pensar, por ser humano, por saber que existe. Morro de inveja das formigas. Pensar é insuportável. Sentir me cansa demais.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Ano novo, mesma merda de sempre

Nos últimos anos eu fiz tudo direitinho. Roupa branca. Calcinha nova (nem sempre dava pra ser vermelha em função da logística dos vestidos brancos). Lista de metas e pendurada na porta da geladeira. Sementinhas de romã na carteira. Tudo certinho. E, ainda assim, nada. Nadinha. Nem um tantinho de sorte que a Angelina Jolie não estava mais usando, nem um pouquinho da fama e fortuna que ficou pros filhos do Michael Jackson. Na-da.
Minha lista de metas na geladeira era tão útil quanto a de supermercado que ficava ao seu lado, sempre com as mesmas coisas pra comprar. Sempre ia ao supermercado precisando comprar tomates e queijo minas e voltava com 4 barras de chocolate. A mesma coisa com minhas metas, ficavam ali paradas, me lembravam de sair de casa com aquele tal objetivo e eu só voltava pra casa pra me pegar rabiscando carinhas tristes ao lado da lista pra mais um dia perdido, mais um dia sem metas, sem tomates, sem queijo minas.
Esse ano, entretanto, tinha decidido fazer as coisas diferentes (claro que comprei roupas novas, mas mais pela desculpa de poder ir ao shopping e gastar todo o meu dinheiro de uma vez só do que pela tradição). Resolvi não fazer simpatias, quase comprei uma calcinha bege pra virar o ano, mas tava tudo fechado na véspera de ano novo então teve que ser amarela mesmo. Resolvi que não ia fazer uma lista. Nunca fui uma pessoa organizada, porque diabos algum dia eu pensei que uma lista de qualquer tipo daria certo pra mim? Fazer uma lista, pra mim, é quase como anotar num papel as coisas que eu, com certeza, não vou fazer. Meu cérebro entende tudo como psicologia reversa, vai ser uma maravilha pra traumatizar filhos (hipoteticamente falando, claro).
Enfim. Metas. As minhas eram até bem nobres para esse ano. Resolvi que ia ser uma pessoa mais paciente, mais compreensiva, mais madura, ia me irritar menos com as coisas e pessoas, resumindo, ia tentar ser uma pessoa melhor. Esse era meio que o objetivo até mais ou menos uns 5 minutos depois que o ano virou. Mas sabe o que? Ninguém nunca ganhou nada sendo bonzinho. Vejam Jesus Cristo, parecia um cara super gente boa, transformava água em vinho, fazia altas ceias pros amigos na sua casa, dava a cara a tapa, e o que ele ganhou? Nada. O pessoal foi lá sem dó, pregou o homem numa cruz e deixou ele horas e horas pagando peitinho até ele se emputecer com aquela porra toda e resolver ressucitar logo pra acabar com a palhaçada. E Gandhi, Madre Teresa, Marthin Luther King, Clark Kent, todos esses, gente muito bacana, mas pessoal só deu valor pra eles mesmo depois de mortos, ninguém colheu frutos ai das suas bondades na terra, quer dizer, tirando Clark Kent que está eternizado ai nos filmes e pega várias mulheres, se bem que tem todo aquele lance de pessoal tentando matar ele com kriptonita né, viu só?
A diferença entre mim e o super-homem é só que eu nem vou me dar mais ao trabalho de tentar. Em 2011 eu não vou tentar ser nada além de: escrota. É isso mesmo. De todas as metas estúpidas que eu já tentei atingir na vida essa é a única que eu tenho certeza que vou conseguir cumprir e, por mais difícil que seja, prometo que vou colocar toda minha alma e esforço para conseguir alcançá-la.