sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Já não há mais coração

O nosso amor é como aquele livro que você me deu e que eu nunca li, perfeito na sua condição imóvel, tentador pelas possibilidades que carrega, irresistível em seu formato, em sua leveza, em seu cheiro de novidade, sem rugas, sem manchas, sem dobras, excelente para o comércio e para a troca. Já o abri com cuidado uma vez ou outra, para ver se ainda tinha cheiro, para ver se já não tinha traças, porém não me interessei pela sua sinopse, nunca me atrevi a avançar da primeira página, aonde está a sua dedicatória de três linhas, três linhas e ali jaz para mim o romance inteiro.
Fantasio com uma leitura repleta de metáforas e mensagens encriptadas que você talvez gostaria que eu desvendasse, sonho com um livro fluido e empolgante que vou recomendar para os amigos e, depois, vou delirar de ciúmes pelo entusiasmo dos amigos, imaginando que, enquanto lêem, eles também estarão pensando em você.
As páginas do nosso livro não têm marcas de dedos, nem dos meus dedos e nem dos seus dedos, as palavras dos nosso livro não formam frases, formam lembranças distantes, daquelas lembranças que lembramos com carinho por não sabermos mais como realmente aconteceram, apenas queremos que sejam boas, apenas queremos que tenham existido de verdade, os parágrafos do nosso livro não têm pontuação, são sentidos pelo ritmo da leitura (ou da não-leitura), são feitos de mudanças e de vazios, e os vazios nunca são feitos para serem lidos - ou seriam os vazios as partes mais importantes da leitura?
O nosso amor está, sim, naquele livro fechado e aderido à prateleira que você me deu sem também ter lido. No início me pareceu um desperdício, um desserviço do amor para com a arte, uma pobreza ter um livro para nunca tocá-lo, uma afronta guardar palavras, esconder palavras, manter folhas e mais folhas de palavras em cativeiro. Não obstante, o livro manteve seu papel lúdico e, no seu silêncio, não destruiu nenhuma das nossas ilusões, nem as minhas ilusões e nem as suas ilusões, nosso livro parece mais livro enquanto continua fechado, pois acredito que, assim como eu, você tem medo de abri-lo e não gostar da história, e devo dizer que uma ilusão sempre vale mais do que uma leitura.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Perfume

Comprei um vidro do seu perfume e encharquei a minha casa de você, derramei você nos livros, nos travesseiros e nos lençóis, te derramei nos sapatos e te deixei grudar nas minhas meias, te espalhei pelos cabelos e pelas dobras do corpo, te misturei nas fontes de água e tomei banho com você, tomei banho de você. Tomei esse banho e depois não tomei nenhum outro mais, deixei o seu cheiro ressecar e formar crostas, deixei você cair da minha pele e virar poeira, parei de varrer a casa e tudo o que eu tenho virou também poeira.
Pensei que não era o bastante e resolvi te derramar ainda nas minhas roupas, nas roupas dos meus pais, dos meus avós, dos meus amigos, nas roupas que ficam expostas nas vitrines das lojas, nos tecidos sem forma que irão tornar-se roupas, nos fios de náilon, nas crianças chinesas, nas plantações de algodão, na máquina de lavar. Quero sete bilhões de pessoas cheirando à você. Quero sete bilhões de você cheirando à pessoas. Quero você cheirando à você, já gastei todo o perfume.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Caixas vs. envelopes

Estou rastreando pelo computador uma encomenda que enviei pelo correio, enviei quatro caixas e tenho medo que se percam no caminho. Meu plano original era enviar tudo dentro de envelopes pardos, comprei quatro envelopes na semana passada, mas só fui ver que minhas encomendas não cabiam nos envelopes quando estava já na agência, chovia muito do lado de fora e eram três e quinze da tarde, o correio fecha às quatro horas. Coloquei tudo de volta nos sacos e me preparei para sair em busca de envelopes maiores, não sei se existem envelopes maiores do que aqueles que eu tinha, eu teria que sair e procurar, mas, quando eu já estava com a mão esticada em direção à porta, o homem que trabalha no correio me chamou e disse para eu usar uma caixa, eu respondi que precisava de envelopes, ele me mostrou uma caixa e eu insisti que queria envelopes, "eu preciso de envelopes", foi o que eu disse, ele falou que os envelopes iriam rasgar, que minhas encomendas eram muito pesadas, eu segurei a caixa que ele me entregou e perguntei se ele vendia envelopes ali mesmo no posto de correio, ele disse que não, só caixas; olhei a caixa, olhei a chuva do lado de fora, neste exato momento um funcionário abriu a porta e deixou entrar um vento úmido e gelado na loja, que se fodam os envelopes, pensei, e resolvi usar mesmo as caixas. Minha encomenda era uma coisa séria, diziam as regras que eu deveria mandar tudo em envelopes, não importam as regras de quê, o importante é que decidi usar quatro caixas em vez de quatro envelopes, porém coloquei os envelopes vazios e pequenos demais dentro das caixas, queria que soubessem que minha intenção era usar envelopes.
O homem ficou contente, "como é bom poder ajudar as pessoas", foi algo assim que ele me disse, quer dizer, lembrando bem, foi exatamente isso o que ele disse, "como é bom poder ajudar as pessoas", estou agora pensando se era apenas um funcionário satisfeito ou se era um homem sensível que viu estampado na minha cara o tanto de ajuda que eu, de fato, precisava. Eu vivo precisando de ajuda, de ajuda e de envelopes, vendo assim, trocar meus envelopes por caixas era o melhor que o homem dos correios podia fazer por mim, mesmo eu não querendo caixas, mesmo eu querendo envelopes. Eu agradeci e peguei meu dinheiro para pagar o serviço, o homem segurou as notas com força e sorriu para mim, "quando você entrou pela porta eu soube que o que você precisava era mesmo de uma caixa", ele disse e é, é verdade, moço-dos-correios, hoje você acertou, mas às vezes eu preciso de mais do que envelopes ou caixas, o que você me sugere?

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Sobre a existência

Eu existo, ou quase existo.
Você existe, existe demais.
Existimos em tempos diferentes e em tempos iguais, você desde o início existiu mais do que eu e existe todos os dias, eu existo uma só vez no mês e, em certos meses, até mesmo me esqueço de existir, você não se esquece de existir nem nos minutos em que ninguém está prestando atenção na sua existência, faz questão de ocupar as horas por completo, é difícil encontrar um momento em que você não tenha existido - e você não existiu em vários momentos.
Há quantos anos você existe de verdade?
Se você tivesse começado a existir há alguns anos atrás eu teria escrito o seu nome vinte e cinco vezes em uma folha em branco e colado na porta do armário, naquele tempo eu iria me poupar de refletir sobre a sua ausência, ficaria satisfeita em saber o seu endereço, sobrenome e apelido, ficaria contente em existir paralelamente.
Você existe há mais tempo do que eu, isso é verdade, mas não existiu na hora certa, você resolveu existir de um jeito errado, resolveu existir por cima de mim, resolveu cobrir minha existência com a sua e existir em um espaço lotado aonde eu não posso existir também. Eu não posso deixar de existir além do que eu já não existo para abrir espaço para você existir ainda mais, os arredores da minha existência estão vazios, você poderia ter sempre existido por aqui.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Cinquenta e nove e meio

Você me liga e eu quero te contar do meu dia, a sua voz está fria e eu quero falar de amor.
Me esforço para que minha voz pareça tão indiferente e distante como a sua já é naturalmente, então falo exatamente o oposto de tudo o que estou pensando, só fico satisfeita quando a frase me parece bastante cruel aos seus ouvidos (acho que você aguenta), mas seu tom permanece inalterado, vejo que acha graça das minhas maldades, a sua risada morna esquenta a minha orelha pelo telefone, minhas crueldades de amor não têm efeito algum sobre você.
Quero entrar na sua voz. Quero morar na sua voz.
Quero gravar minhas iniciais com uma navalha nas suas cordas vocais - o nó que a gente deu ficou frouxo demais.
Eu gosto de te ouvir enquanto coleciono palavras. Sua voz é muito fácil de desmembrar. Antes mesmo de você ir embora eu já colecionava essas palavras. Estúpidas. Desesperadas. Viscosas. Essas palavras que eu sabia que deixaria de dizer. Tenho hoje tantas delas guardadas que me pergunto, com uma certa surpresa, sobre o que conversávamos.
Mas que tolice a minha, nós não conversávamos.

domingo, 12 de agosto de 2012

Sobre Paris

No início desse ano eu fiz uma viagem para a europa que durou mais ou menos um mês. Eu não comentei sobre isso porque voltei para casa com a sensação de que não tinha prestado atenção em nada. O que foi bastante verdade. Eu experimentei vários sabores de sorvete, eu ouvi vários pedaços de história, eu tomei banho em vários lugares inconvenientes, mas eu não prestei atenção em muita coisa. Quando a gente viaja, a gente perde a capacidade de observar, eu acho (a maioria das pessoas perde, pelo menos). A observação vem da exaustão, quer dizer, observar, prestar atenção, é exaustivo. Observar não é sinônimo de parar em frente a um quadro e admirar, ou de suspirar ante uma paisagem bonita, ou de olhar. Observar é se cansar na frente do quadro, é descobrir o tédio de uma obra de arte que você, a princípio, tinha achado interessante, é desistir de fotografar a paisagem dos cartões-postais porque já enjoou de tanto olhá-la. Não dá tempo de observar quando você é turista. Você quer ser turista e fazer coisas de turista, quer parecer simpático na hora de pedir informação, quer pedir informação toda hora, quer esconder o mapa e tentar se virar com a língua estranha, quer comprar objetos que você nunca vai usar, quer tirar fotos que você nunca vai olhar. É bom querer ser turista. Ser turista é ver um monte de coisas velhas pela primeira vez. Ser turista é ser um pouco criança de novo.
É bom ser turista, mas é ruim voltar para casa sem nada na cabeça, só com as lembranças superficiais e meio tortas que vão se deformando mais e mais a cada vez que você tenta recontá-las. Eu, frequentemente, voltava a ficar triste pensando que tinha perdido a minha oportunidade de prestar atenção em lugares aonde eu provavelmente não poderia voltar. Ficava triste até que achei um caderno que eu levei para a viagem aonde está um parágrafo pequeno sobre o que eu achei de Paris. Eu não esperava gostar nada de Paris, eu não tirei fotos, eu não esperava sequer me lembrar de Paris, mas eu, hoje, com tão pouco entusiasmo pelas coisas, gosto de ter esse parágrafo. Paris foi o único lugar em que eu fui sozinha, passei lá os últimos dois dias da viagem e, só agora, quase oito meses depois, eu percebi que prestei atenção em alguma coisa, e ter prestado atenção por dois dias me deixou feliz.
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"Paris tem alguma coisa de esquecida e de muito povoada que a faz bonita, o metrô fica cheio, mas as ruas são vazias, Paris tem moradores logocentristas que gostam de usar a metalinguagem e que ainda pensam que a feiúra do corpo representa a feiúra da alma, Paris parece que gosta de criar almas. Em Paris, você vê a nudez feminina eternizada nas varandas, exposta nos habitantes, mesmo quando estes estão cobertos de casacos, Paris fica muito fria no inverno, mas é essencialmente feminina, vive da simbiose entre estátuas e mulheres, tem uma iluminação leitosa por toda parte e, às vezes, você sente o cheiro até da água. Somente os ricos esnobes e metidos (e que querem aparecer para os amigos) falam que Paris tem um cheiro fedido, Paris tem um cheiro forte de todas as coisas, essa é a verdade, mas "forte" não é necessariamente ruim, você só tem que aprender a separar os cheiros, separar os adjetivos, em Paris é tudo uma questão de linguística."

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Seis


Às vezes meu corpo inteiro dói na hora de respirar, e aí, então, eu sei que estou pensando em você. Que engraçado, nosso reconhecimento agora é feito pela eletricidade dos impulsos dolorosos, pelo choque dos nervos mais expostos, aqueles mesmos nervos que encostamos sem querer nas quinas das mesas e que nos trazem inesperada agonia. O nervo fica latejando por um tempo até passar, eu fico também – latejando –, uma vez, duas vezes, três vezes, você não vai abrir a porta? Meu corpo está vazio e dói. Já passou aquela inflamação da qual eu tanto estava reclamando, minha pele, inclusive, nunca esteve tão branca. Estou perdendo a cor como se tivesse mergulhado em um balde de cloro, pode perguntar para qualquer um, não estou exagerando. Estou em despigmentação contínua. Meu corpo está tentando me curar de você, mas, que incompetente, só me faz empalidecer, e doer. Não é uma dor espiritual, preciso que essa parte você entenda bem, não quero projetar em você alguma suposta culpa por lacerar minha alma ou qualquer coisa dramática assim, o que eu sou por dentro está intacto (ou tão intacto quanto a poluição do ar e os excessos do cotidiano permitem que esteja), eu nunca deixei que você chegasse até lá. O que dói é a minha superfície, o revestimento dos meus órgãos e as células que já morreram e que eu não deixo irem embora, você sabia que a cada mês a pele inteira se renova?, ela se ocupa com a divisão, mas de vez em quando dói mesmo, e eu nem preciso pisar em pregos nem nada. Meus joelhos também já não dobram com muita facilidade, meu pescoço faz um barulho incômodo sempre que eu preciso olhar para o lado, meus pulmões rasgam o diafragma toda vez que querem expandir, e como expandem estes pulmões, são quase dezenove mil e duzentos rasgos por dia, vinte e oito mil e quinhentos se você for contar a madrugada, e é isso o que mais me dói – ou o que dói de verdade. Então, quer dizer, se eu for falar com a maior sinceridade, não me dói tanto assim a pele, o baço ou a falta que você me faz, a única coisa que me dói é respirar.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Bem simples

A vida não é simples. Não é simples, não é simples, não é simples, pronto, neguei a simplicidade da vida três vezes, não sei se isso significou alguma coisa para você, mas não adianta você me mandar olhar o mar, dar uma volta na praia ou passar filtro solar, eu não vou mudar de opinião. Tudo bem, a vida pode não ser simples, mas precisa mesmo ser complicada?, você vai perguntar, pois eu digo que sim, tem que ser complicada! E muito! Quanto mais impossível de se desentranhar das complicações da vida, melhor.
Eu não quero que ninguém me mande seguir em frente, eu não quero limpar a minha mente, não quero sorrir para estranhos na rua, não quero acordar e me dar bom-dia, não quero desperdiçar meu bom-humor com a minha família. Não quero amar as pessoas como elas são, as pessoas são muito chatas, quero mais é que elas mudem. Imagina, se todo mundo inventar de ter uma personalidade não vai ter mais ninguém para participar dos reality shows.
Eu gosto de olhar para trás e me atracar com o passado, não me importo em me despedir duas vezes e ainda acordar do seu lado, não quero esquecer quem me fez sofrer, aliás, quer saber, volte aqui, me faça sofrer de novo, me faça sofrer demais. Não, eu não quero aprender com os meus erros, muito obrigada, pretendo errar quantas vezes por dia eu for capaz, vamos competir para ver quem erra mais.
Eu só vou dar atenção para o começo e o fim, tirem da minha frente esse meio e, por favor, parem de me falar para ter coragem, parem de supor que eu preciso de paz, não estou nem aí para os pequenos detalhes, quero somente os gestos grandes, quero problemas enormes, quero arrombar sua casa e destruir a mobília, quero virar marginal e, quem sabe, arruinar nossas vidas. Porque, você sabe, a vida não é simples, e eu faço questão de que ela continue assim.

sábado, 2 de junho de 2012

O segredo

Lista de coisas fáceis de acreditar:
1. banhos quentes
2. cheiro de gente
3. cortinas fechadas
4. membros amputados

Lista de coisas difíceis de acreditar:
1. dentes perfeitos
2. contas matemáticas que tendem ao infinito
3. amor verdadeiro
4. poetas felizes

Os livros de auto-ajuda que me perdoem, mas não acreditar é fundamental.

domingo, 27 de maio de 2012

Rio de Janeiro

O meu medo é que a gente deixe essa semana passar, que o mês inteiro passe, dois meses, um ano, sabe lá quantos anos a gente vai deixar passar. O meu medo é que a gente mude. Quer dizer, é claro que vamos mudar, a questão não é essa, minha preocupação é que é possível que deixemos esse tempo passar indefinidamente até eu não mais saber da sua vida, até você também não saber nada da minha, até sermos pessoas diferentes, separadas por incontáveis mudanças, milhares de minutos de distância, que nos impedirão de, algum dia, voltarmos para as pessoas que fomos, ou que quisemos ser - ou que pensávamos querer ser.
Nós não vamos nos esbarrar por aí como acontece nos filmes. Eu não vou ter a oportunidade de ver a sua felicidade de relance, de tramar contra o seu novo romance, de perguntar se ainda existe uma chance. Isto não é uma comédia romântica, não temos direito à rimas e à saudades. O traçado urbano abaixo de nós foi desenhado com o intuito de impedir o nosso encontro. Nosso primeiro esbarrão foi uma falha do acaso. Os outros que seguiram foram pura teimosia. A cidade foi construída pensando na nossa separação e, daqui a pouco, após uns tantos quadrados riscados do meu calendário, após eu perder a conta das tantas páginas e dias que se passaram, seremos aquelas pessoas as quais estamos destinados a nos transformar, com novos pensamentos, com ideias diferentes sobre o capitalismo, sobre as mudanças climáticas, sobre os personagens das nossas séries favoritas, estaremos em universos paralelos, separados por treze ou dezesseis estações de metrô que nunca se cruzam.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Chega de saudade

Essa é a última vez que eu escrevo para você voltar. Está certo que das outras vezes rasguei as cartas antes mesmo de assinar, mas você deveria saber, deveria ter previsto, deveria ter sentido minhas palavras urgentes viajando sobre os fios de cobre que enfeitam as calçadas e misturando-se à luz da sua casa, deveria tê-las visto escorrendo junto com a água do seu chuveiro e lavando o seu cabelo; contaminei todos os rios e as praias da cidade com minhas tóxicas palavras de amor. Os peixes estão morrendo, meu amor está consumindo todo o oxigênio que existe no mar, o mau cheiro já viajou pelo ar até a sua rua, mas você simplesmente fechou as janelas e ligou os ventiladores de teto, nem mesmo percebeu que os pescadores não fazem mais a feira-livre dos domingos. Me desculpe o incômodo, mas a putrefação foi o melhor jeito que encontrei para me comunicar.
Eu não vou pedir outra vez para você ficar. Não, é verdade, eu nunca de fato te pedi tal coisa, sua memória continua excelente, mas você não olhou nos meus olhos, não cheirou minhas roupas, não entrelaçou nossos dedos? Achei que tudo o que eu dissesse seria um desagradável pleonasmo às súplicas do meu corpo. Pensei que meu amor assim tão espalhado pela sala te faria ir embora ainda antes. De qualquer forma, você foi. Sempre sofri antecipadamente pelo vazio que se instalaria quando você fosse embora. Você foi. Não sei se foi realmente pelo meu amor ou se você inventou algum outro motivo estúpido para me manter inocente. Às vezes preferia não ter te dedicado amor nenhum, outras vezes penso que foi mesmo melhor que eu o tenha te dado por inteiro para que você o guarde, o deixe mofar, o dê de comer aos mendigos da praça, faça com ele o que bem desejar, desde que o leve para longe de mim. Continue indo embora de mãos dadas com o meu amor, não vá pela areia e cuidado com os peixes que você resolva comer no caminho, fora isso, pode ir sem se preocupar, eu, como sempre, desisti de pedir para você voltar.

domingo, 1 de abril de 2012

Não vou pensar

Eu não vou pensar em você hoje. Não vou pensar nos seus olhos fechados, e depois não vou pensar neles abertos. Não vou imaginar como fica a minha própria imagem de cabeça para baixo, quando projetada na sua retina. Não vou pensar no diâmetro das suas pupilas e muito menos na coloração das suas mucosas. Não vou pensar na profundidade das suas órbitas ou na inervação motora das suas pálpebras. Os movimentos dos seus olhos podem pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
Eu não vou pensar nas rachaduras dos seus lábios e nem nos sorrisos que escapavam por ali, não vou verificar se tem cianose, não vou me preocupar com a sua hidratação, nem mesmo vou pensar no sabor da sua saliva e em tudo o que eu esqueci de dizer, não vou me lembrar das últimas palavras que eu ouvi de você - nem das primeiras. A sua voz pode pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
E, finalmente, eu não vou pensar no seu calor intoxicante entupindo meus poros, eu não vou pensar nas suas roupas amassadas e quentes caindo no chão, eu não vou pensar na sua febre nem no meu termômetro, eu não vou pensar em encostar em você. Eu não vou pensar em você. Hoje.

sábado, 17 de março de 2012

E você, já morreu hoje?

A morte é um polímero. É uma combinação de todas as pequenas fatalidades que te trouxeram até o presente dia, das incontáveis vezes em que você teve que morrer para se desprender, desligar, desapegar, crescer. Cada ciclo que se conclui é uma nova morte para a sua coleção. Cada última vez e cada nunca mais te propulsionam um pouco mais para longe do ponto inicial, te preparam um túmulo de pedra gelada aonde você pode largar aquele sonho que acabou, que se realizou ou do qual você desistiu.
Quando te conheci, morri uma vez, encobri com terra a minha realidade de tantas mortes sem importância, quais foram mesmo as causas das minhas mortes de antes?, quando te beijei, morri pela segunda vez, a partir dali não saberia mais viver longe do calor e da umidade, nunca mais me importei com os dias de frio, quando nos casamos em meu pensamento, morri pela terceira vez, foi uma linda cerimônia, uma pena você ter perdido, depois disso eu só conseguia ressuscitar ao seu lado, morria mil vezes durante o dia e me deixava continuar morta até te reencontrar, foi a mais poética de minhas mortes, vivia quase a semana inteira em meu corpo de cadáver, apodrecendo diante da vista indiferente das pessoas (estas preocupadas apenas com a gravidade de suas próprias mortes diárias para prestar atenção no grau avançado de minha decomposição), enquanto esperava o ônibus, cortava as unhas, salgava as batatas e, só então na sua presença, me permitia voltar a viver.
Agora morro novamente. Morro em um ato lento e contínuo. Esta morte se prolonga de modo como se não quisesse me deixar morrer, não desta vez, e equilibro as outras mortes que querem desabar sobre mim enquanto esta não acontece. Espero saber ressuscitar tão bem como você me ensinou.
O bom das lágrimas é que elas não deixam cicatrizes, imagine você, tantas que são essas mortes pelas quais tenho que chorar. Só eu sei quantas mortes eu já morri nesta vida, estou sempre vestida para o próximo funeral.

terça-feira, 6 de março de 2012

Anquilose

A noite me transforma em bloco e, por muito pouco, não chego a ser de carnaval, de rua, de gente. Saio em bloco de mim, com o ranger melódico das articulações inflamadas fazendo as vezes de samba.
A manhã se refresca com a minha rigidez.
Amanhã, com sorte, o cimento já não vai mais estar tão fresco, vai ser mais fácil levantar, vai ser melhor, isto é, se amanhã conseguir evitar o desprazer de vir a existir. O amanhã era muito mais agradável ontem, você vai ter que concordar, quando a gente sabia que ele não existia, quando ele parecia somente mais uma brincadeira da nossa doença, quando o corpo já estava mais curto e macio pelo fim do dia. O amanhã está calcificado na sua presença de hoje, faz uma vértebra consolidar-se na outra para impedir o movimento, impedir que eu caminhe até o dia seguinte, não precisava de ajuda, eu já me arrasto para longe.
Sei que você reserva o futuro especialmente para a morte, está certo, é à ela mesmo que ele pertence, nós temos ainda esses fantasmas de nós mesmos e os glicocorticóides, não precisamos de futuro.
Minha inflexibilidade cresce assimétrica.
O amanhã existe cada vez menos conforme a fusão do nosso eixo axial se torna completa, mas que sorte a nossa.
Minha rigidez se renova pela manhã.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Coração no bolso

Gostaria de colocar o coração no bolso enquanto jogo essas intermináveis partidas de tênis com minhas próprias vísceras. Estou tentando cortar a carne em cubos perfeitos para que você coloque no pão e faça um sanduíche bem torto, cheio de pedaços caindo pelas beiradas; meu estômago mal-passado parece ser o que você mais gosta.
Engoli daquela sua terra com larvas de borboletas e pela minha boca saíram ramos e folhas de bananeira, brotos de feijão presos nas narinas os quais nem mesmo posso me atrever a tirar, pois é falta de educação, “Olhe esta menina sem boas maneiras cutucando o nariz”, “Mas estou apenas tentando me livrar de um broto de feijão que plantei sem querer no estômago”; ninguém acredita e tenho que andar pelas ruas me esquivando dos jardineiros e podadores de árvores para que, meu Deus, não me arranquem o nariz.
Ando, então, aos tropeços, como uma criança que assistiu a um filme de terror desacompanhada e que agora vê atividades paranormais em cada brisa que lhe balança os cabelos. Peço, por favor, para que segurem meu coração enquanto corro atrás do ônibus, para que não deixem que ele caia no chão, mesmo ele não sendo de ninguém, ainda sinto que preciso cortá-lo simetricamente e cozinhá-lo um pouco mais para que quem tome o próximo pedaço não passe mal logo na primeira mordida. Puxe esta árvore que cresceu dentro de mim pelas orelhas, me ajude a devolver os filmes de monstros que aluguei, preciso encontrar alguém que segure meu coração enquanto termino de me escaldar em óleo fervendo para a próxima refeição, alguém que segure meu coração até que eu esteja pronta para voltar e buscá-lo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Sobre o otimismo e as ruas de pedra

Eu conheci um otimista na infância. Ele era um pouco mais baixo do que eu, tinha olhos claros e a pele vermelha, falava baixo e nunca mostrava os dentes durante as refeições. Nós crescemos juntos, passando todos os verões, até o princípio da puberdade, viajando para a região dos lagos para aproveitar melhor o sol. Ele me dizia que o otimismo tinha quatro pares de patas e me mostrava cada uma delas na areia, saindo de um cilindro assimétrico que desenhava com o dedo, pois naquela época eu não sabia ainda fazer contas e precisava ver que eram oito com clareza para entender como podia o otimismo subir pelas paredes e tecer em apenas uma noite enormes teias de seda para se pendurar no teto.
Aos treze anos, mais ou menos, ele me disse que não mais me acompanharia nas viagens de fim de ano e, quando perguntei o porquê, apenas me disse que preferia as ruas asfaltadas entre as feitas de pedra. Não soube dele desde então e, no ano seguinte, resolvi criar dentro de um pote de plástico com algodão molhado o meu próprio otimismo.
Meu pequeno otimismo cresceu com um esqueleto rígido envolvendo seu corpo diminuto e se alimentava uma vez por dia de pequenas porções de rotina que eu colocava na beirada do seu algodão. Em pouco tempo, cresceram nele presas curtas e enegrecidas as quais enfiava com alegria nas pequenas bolotinhas de rotina, desenvolvendo o estranho hábito de sugar de uma só vez seu conteúdo mole e gratificante, deixando penduradas no tecido que contornava o plástico carcaças recheadas de um tédio pegajoso que introduzia no lugar e envoltas em fios de desespero que desenrolava da própria saliva.
Meu otimismo, então, tinha quatro pares de patas, três segmentos de corpo e um esqueleto sólido envolvendo o tórax. Vivia nos pequenos paraísos de escuridão do meu quarto e entrava nos sapatos suados e impregnados de boas intenções passadas de prazo que eu costumava colocar para arejar em algum desses cantos aonde o frescor da madrugada fazia a curva durante a noite; entrava nos sapatos e esperava pacientemente para inocular suas toxinas na minha pele vulnerável quando eu chegava para esmagá-lo pela manhã.
Demorou bastante tempo até que eu compreendesse que o otimismo é a ruína da rotina e do convívio diário e percebesse que os otimistas, dentre as suas tantas peculiaridades, jamais andam olhando para o chão e, por isso, enfiam os saltos nas porções de terra entre os calços das ruas de pedra.
Portanto, antes que me arrancasse o privilégio de andar de cabeça baixa e de contar as vezes que meus pés tocam as linhas da calçada, resolvi que não podia mais criar a criatura selvagem dentro de um apartamento (talvez se eu morasse em uma casa com jardim, quem sabe). Deixei meu otimismo em um retiro de artistas, para que não se consuma sozinho com suas próprias expectativas, para que emoldure seus sonhos e os pendure em uma parede amarela de tinta e velhice, para que assista o desengano alheio explodindo em uma constante festa de despedida ao seu redor e não se sinta tão sozinho como na minha gaveta ou no meu sapato, comendo do pouco que restou dentro de mim para alimentá-lo além da realidade.