sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Cinquenta e nove e meio

Você me liga e eu quero te contar do meu dia, a sua voz está fria e eu quero falar de amor.
Me esforço para que minha voz pareça tão indiferente e distante como a sua já é naturalmente, então falo exatamente o oposto de tudo o que estou pensando, só fico satisfeita quando a frase me parece bastante cruel aos seus ouvidos (acho que você aguenta), mas seu tom permanece inalterado, vejo que acha graça das minhas maldades, a sua risada morna esquenta a minha orelha pelo telefone, minhas crueldades de amor não têm efeito algum sobre você.
Quero entrar na sua voz. Quero morar na sua voz.
Quero gravar minhas iniciais com uma navalha nas suas cordas vocais - o nó que a gente deu ficou frouxo demais.
Eu gosto de te ouvir enquanto coleciono palavras. Sua voz é muito fácil de desmembrar. Antes mesmo de você ir embora eu já colecionava essas palavras. Estúpidas. Desesperadas. Viscosas. Essas palavras que eu sabia que deixaria de dizer. Tenho hoje tantas delas guardadas que me pergunto, com uma certa surpresa, sobre o que conversávamos.
Mas que tolice a minha, nós não conversávamos.

domingo, 12 de agosto de 2012

Sobre Paris

No início desse ano eu fiz uma viagem para a europa que durou mais ou menos um mês. Eu não comentei sobre isso porque voltei para casa com a sensação de que não tinha prestado atenção em nada. O que foi bastante verdade. Eu experimentei vários sabores de sorvete, eu ouvi vários pedaços de história, eu tomei banho em vários lugares inconvenientes, mas eu não prestei atenção em muita coisa. Quando a gente viaja, a gente perde a capacidade de observar, eu acho (a maioria das pessoas perde, pelo menos). A observação vem da exaustão, quer dizer, observar, prestar atenção, é exaustivo. Observar não é sinônimo de parar em frente a um quadro e admirar, ou de suspirar ante uma paisagem bonita, ou de olhar. Observar é se cansar na frente do quadro, é descobrir o tédio de uma obra de arte que você, a princípio, tinha achado interessante, é desistir de fotografar a paisagem dos cartões-postais porque já enjoou de tanto olhá-la. Não dá tempo de observar quando você é turista. Você quer ser turista e fazer coisas de turista, quer parecer simpático na hora de pedir informação, quer pedir informação toda hora, quer esconder o mapa e tentar se virar com a língua estranha, quer comprar objetos que você nunca vai usar, quer tirar fotos que você nunca vai olhar. É bom querer ser turista. Ser turista é ver um monte de coisas velhas pela primeira vez. Ser turista é ser um pouco criança de novo.
É bom ser turista, mas é ruim voltar para casa sem nada na cabeça, só com as lembranças superficiais e meio tortas que vão se deformando mais e mais a cada vez que você tenta recontá-las. Eu, frequentemente, voltava a ficar triste pensando que tinha perdido a minha oportunidade de prestar atenção em lugares aonde eu provavelmente não poderia voltar. Ficava triste até que achei um caderno que eu levei para a viagem aonde está um parágrafo pequeno sobre o que eu achei de Paris. Eu não esperava gostar nada de Paris, eu não tirei fotos, eu não esperava sequer me lembrar de Paris, mas eu, hoje, com tão pouco entusiasmo pelas coisas, gosto de ter esse parágrafo. Paris foi o único lugar em que eu fui sozinha, passei lá os últimos dois dias da viagem e, só agora, quase oito meses depois, eu percebi que prestei atenção em alguma coisa, e ter prestado atenção por dois dias me deixou feliz.
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"Paris tem alguma coisa de esquecida e de muito povoada que a faz bonita, o metrô fica cheio, mas as ruas são vazias, Paris tem moradores logocentristas que gostam de usar a metalinguagem e que ainda pensam que a feiúra do corpo representa a feiúra da alma, Paris parece que gosta de criar almas. Em Paris, você vê a nudez feminina eternizada nas varandas, exposta nos habitantes, mesmo quando estes estão cobertos de casacos, Paris fica muito fria no inverno, mas é essencialmente feminina, vive da simbiose entre estátuas e mulheres, tem uma iluminação leitosa por toda parte e, às vezes, você sente o cheiro até da água. Somente os ricos esnobes e metidos (e que querem aparecer para os amigos) falam que Paris tem um cheiro fedido, Paris tem um cheiro forte de todas as coisas, essa é a verdade, mas "forte" não é necessariamente ruim, você só tem que aprender a separar os cheiros, separar os adjetivos, em Paris é tudo uma questão de linguística."