sábado, 21 de dezembro de 2013

Última vez

A gente disse adeus e não quis se levantar. Por algum motivo, sabíamos que essa seria a última vez. Já nos despedimos tantas vezes, mas só naquele momento pareceu um adeus de verdade, e era difícil levantar, o banco de pedra nos puxava para baixo, ao menos eu sentia que me puxava, não sei se você também o sentia puxar ou se era eu quem estava usando a força do banco para te manter ali, não o banco; eu estou feliz, você disse, e o banco pesou ainda mais, não está, eu respondi, e o meu rosto queimou de vergonha por apontar a sua infelicidade, você estava amando e não estava feliz, era melhor então não amar, eu queria ter dito, mas fiquei calada, a gente precisava mentir para poder se levantar.
As pessoas que jogavam dominó na praça te olhavam chorar, será que elas estão ouvindo o que eu estou dizendo?, você perguntou, as pessoas não resistem às lágrimas, precisam olhar, precisam saber dos nossos motivos, dos nossos machucados, das nossas escolhas erradas. Olha para mim, e você não olhava, olha para mim, e você não olhava, por favor, eu disse, e você me mostrou a cara inchada e vermelha, estava triste por pena de mim, pensei, achei que nessa hora você ia se levantar para me dar um abraço, mas imagino que o banco pesado demais tenha te prendido no lugar. Era a nossa última escolha, não é uma escolha, você disse, mas era a nossa última escolha. Eu segurava a sua mão e você usava a mão que eu tinha escolhido segurar para limpar o rosto, eu fingia não perceber e segurava a sua mão outra vez, você já tinha ido embora, todas as outras vezes já tinha ido embora, mas a sua mão ficava ali, eu podia segurar sua mão para sempre, mesmo depois da última despedida, mesmo quando você não existisse mais, eu podia segurar o fantasma da sua mão, eu ainda tinha medo de você morrer sem eu saber.
Tinha medo de você morrer longe, na sua nova casa, tinha medo de que o seu novo amor te vestisse com roupas brancas e te colocasse em um caixão de madeira e eu continuasse segurando a sua mão, tinha medo de passar anos segurando a mão de um cadáver e não perceber seus ossos decompondo-se dentro dos meus dedos fechados, precisava abrir a mão que segurava a sua e te deixar ir embora, precisava deixar você levantar depois do nosso último adeus, precisava te deixar morrer daqui a vinte minutos ou sessenta anos, algum dia você irá deixar de existir de qualquer maneira, eu precisava deixar você existir do jeito que você escolheu, não é uma escolha, você repetiu, a última escolha nunca parece uma escolha.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Sobre o egoísmo

Quando eu era pequena, tinha medo de que minha mãe morresse, pois, sem ela, eu não teria para quem dizer que eu tinha medo de morrer. Já nasci egoísta. Nasci entre a nata dos seres humanos imperfeitos, entre aqueles predestinados a espalhar pelo planeta todos os sentimentos ruins que homens e mulheres tentam desesperadamente varrer para debaixo do tapete gigante que recobre a vida em sociedade, trazer de volta à superfície o que fica camuflado nos sorrisos educados e roupas sociais desses homens e mulheres que comem verduras, não ultrapassam sinal vermelho, seguem dez mandamentos, costuram as próprias meias e fazem compras de natal, seres humanos que já vieram com seus compassos morais acertados e não precisaram que ninguém lhes ensinasse conceitos de compaixão e altruísmo, minha missão na Terra é simplesmente contaminá-los pouco a pouco, envenená-los diariamente com doses mínimas de realidade, tirá-los das capelas douradas por dez minutos ao dia para pegar ar fresco, minha missão é destrui-los enquanto aprendo com eles.
O egoísmo, na minha opinião, é uma atitude bastante orgânica e intrínseca à nossa existência, provoca em nós sensações que nos aproxima, infinitamente mais do que qualquer prece ou aula de meditação, do propósito original para que fomos designados (i.e. sobreviver) e nos afasta de uma superficialidade coletiva, de uma constante pressão para alterarmos tudo de instintivo que existe em nós, da esmagadora necessidade de sermos bons o tempo inteiro, mas o mundo contemporâneo não quer nada orgânico de nós.
Eu nasci para sobreviver, tudo em mim indica isso, o egoísmo é o meu prêmio evolutivo, é a minha mutação, sou o mais autocentrado dos seres vivos e não teria como ser diferente, tudo o que eu conheço sou eu, tudo o que os outros são parte de mim e somente o que parte de mim pode realmente existir. Eu nasci de armadura e espingarda nas terras de Darwin.
Eu precisei que me dissessem que era proibido roubar, que matar estava fora de questão e que o amor não precisa ser atacado e exterminado, nada disso veio de fábrica, precisei que me ensinassem tudo, cada norma, cada lei, cada coreografia para conseguir me misturar no cenário atual sem chamar atenção, nada me veio passivamente, nada além do egoísmo, que ainda é a única coisa que, hoje em dia, me parece natural. Sigo contaminando.

domingo, 10 de novembro de 2013

O bom emprego ruim

Eu gosto de pessoas que detestam seus empregos, pessoas miseráveis e sem rumo que fazem com que eu seja um escape útil e necessário, que me transformam em oportunidade em meio a um mundo aparentemente rígido e fechado, pessoas interesseiras e mesquinhas que, sem qualquer disfarce, me usam como fuga, como festa ou feriado.
Não sinto que haja espaço para mim na vida de pessoas completas, eu não me encaixo no sorriso fácil ao fim de uma segunda-feira, tudo o que vai além de uma rotina infeliz está fora do meu alcance, minha função é preencher vazios, me espalhar por frestas, fazer parte dos grandes blocos de domingo e das massas de ar quente. Pessoas felizes no trabalho não precisam dos meus remendos ou da minha companhia silenciosa, pessoas felizes no trabalho não conseguem ver qualquer valor no meu discurso parco ou nos meus movimentos em câmera lenta.
Eu faço muito pouco barulho, tenho dedos gelados e ando na ponta dos pés, o meu ritmo é de cozimento, nunca ebulição. A insatisfação é o único sentimento que permite a minha existência, fora dela eu desenrolo, desenlaço, me perco no colchão. Pessoas satisfeitas não têm paciência para me esperar, para me ouvir, para me acalmar, pessoas satisfeitas estão sempre satisfeitas demais para deixarem que eu provoque nelas algum tipo de satisfação.

domingo, 28 de julho de 2013

Fontanelas

A cabeça nasce com um buraco no meio, dois, na verdade, seis, se quisermos entrar em detalhes. A cabeça nasce com espaço para crescer mais. Chegamos ao mundo com alguns reflexos, muita fome e a cabeça aberta, aberta em uma via de mão dupla, aberta para o bom, o mau e o feio, aberta para os sorrisos e para as pancadas, aberta para os lobos e para os macacos. Por esse motivo, seguramos as crianças em lençóis apertados, a cabeça é aberta, se cair, amassa.
A cabeça permanece aberta até mais ou menos a metade do primeiro ano de vida, um ano e meio para a liberdade completa do fluxo de informações, para o amor ir e vir conforme sua vontade, para se decidir se fica todo do lado de fora ou se permite que um pouco permaneça lá dentro. E, então, prazo concluído, a cabeça fecha, a criança cresce, a cabeça cresce junto, mas cresce já fechada, com apenas os buracos das narinas e ouvidos para deixar a novidade entrar, muito se perde nas tortuosidades do conduto auditivo e no oco do nariz, não é mais como nos tempos de cabeça aberta em que tudo podia entrar ou sair pelo meio, através da aflitiva e subestimada moleira, o crescimento cria um filtro para a entrada e a saída de informações e de sentimentos e de secreções, o crescimento é rígido e mais demorado de se contornar, é preciso forçar o que se quer colocar na cabeça com certa insistência, é preciso limpar as orelhas com algodão seco e assoar o nariz durante o banho, os canais precisam estar livres depois que a cabeça se torna lacrada.
Mais complicado do que introduzir algo por entre esses ossos fundidos e pouco aerados é retirar o que foi enfiado ali dentro, o cérebro é repleto de labirintos, ou melhor, mergulhando no clichê da cabeça e da infância, o cérebro é um grande labirinto, e o que foi lançado em seu meio dificilmente sai ou retorna ao exterior completamente intacto, é preciso chacoalhar demais a cabeça, ou serrar o osso em partes e abrir tudo de novo, fazer buracos com parafusos e martelos, ou mesmo usar da força para parti-la pela metade, mas a verdade é que ninguém considera muito a ideia de reabrir a cabeça, a concepção geral é de que é a parte do corpo mais dura e também mais delicada, uma vez já completamente suturada, as pessoas têm medo de abri-la outra vez, só o fazem nos casos extremos de câncer ou acidente, de resto, a cabeça encontra-se cronicamente fechada e, sendo assim, deve-se tomar um mínimo de cuidado com as ideologias e os amores que são sugados para dentro, a cirurgia não parece realmente uma opção, e é arriscado esperar que o tempo faça tudo se confundir e se perder por entre os milhares de sulcos e reentrâncias, pois, aliás, nada se perde, tudo se transforma, não é mesmo?

sábado, 6 de julho de 2013

Coração na cabeça

Às vezes não consigo dormir de tão forte que bate o coração. De início, pensei ser um sintoma de amor, eu sentia o amor, conseguia segurá-lo pelo braço, soletrar o seu nome, beijar o seu rosto, lia poemas de saudade e ficava feliz em deixar o coração me bombear. Ainda pensando que era amor, eu não tomava calmantes ou pílulas analgésicas, mesmo quando o pescoço doía e o sangue arranhava, eu simplesmente me resignava aos seus efeitos colaterais e permitia que ele batesse no ritmo que bem quisesse, chocando-se acelerado ou perdendo um ou dois compassos.
Mas, então, acabou. Acabou o amor e o coração continuou batendo, batendo forte, socando o peito, estourando os ossos, roubando o ar. Fui fazer exames. Deixei que um médico de cabeça branca e cintura larga escutasse o meu coração.
“Está batendo tum-tá?”, perguntei.
“Está. Ouça.”, ele aumentou o volume do monitor e eu ouvi: tum, e, depois de um tempo: tá.
Parecia estar tudo bem.
“Mas esse tum não está muito longe do tá?”, duvidei.
“Está normal.”, disse o médico.
“Mas não está demorando demais?”, insisti.
“Você faz exercícios?”, o médico perguntou.
“Não.”
“Bom, de qualquer forma, isso não tem muita importância.”
“Ia bater mais rápido se eu fizesse exercícios?”
“Não, mais devagar.”, o médico respondeu com um olhar confuso.
No ínterim da consulta, meu coração sapateava com violência, agora certamente quebrou uma costela, pensei. Com discrição, encostei a mão na lateral do corpo e examinei a contiguidade de cada osso, inteiro, inteiro, inteiro, inteiro, inteiro, inteiro, inteiro, senti sete costelas inteiras, percebi o coração fibrilando de leve, como se caçoando da minha ingenuidade. Expliquei ao médico como me atrapalhava para dormir, o coração.
“Não é a cabeça?”, perguntou o médico.
Encarei o homem com perplexidade, a cabeça, não, não era a cabeça, eu sinto o coração bater, ouço o barulho do coração a noite inteira, deve estar dilatado, estourado, arrebentado, não é na cabeça que ele bate, é no peito, no tórax, se o senhor quiser o nome correto, está batendo agora, como pode ouvir, e à noite bate ainda mais forte. Fui para casa.
Passou um mês e resolvi amar de novo, e o coração não parou nem por um segundo, bateu forte como no primeiro amor, talvez mais, visto a fragilidade que ganhou nas paredes após tantas batidas, meu coração não discriminou um amor do outro, não separou nem mesmo o amor da falta dele, continuou batendo descontrolado como um órgão degenerado, ou cronicamente insuficiente, ou de um paciente infartado, diriam os românticos que bate como se amasse a todo tempo, mas o médico estava certo, afinal, é na cabeça. Não, o coração bate incoerentemente forte no peito mesmo, mas o amor, este é só na cabeça.

domingo, 14 de abril de 2013

Sobre a lepra e a língua portuguesa

Hoje em dia, ninguém mais perde pedaços do corpo por causa de lepra, quer dizer, de repente até perde, se não se cuidar, mas, hoje em dia, a gente também não chama mais a doença de lepra, é hanseníase o nome socialmente aceitável, a gente não quer estigmatizar, não queremos deixar ninguém marcado. As pessoas já estão marcadas de um modo ruim pela própria doença, não queremos marcá-las de um modo ainda pior pelas palavras, faz sentido, não queremos que elas sintam-se leprosas, no pior sentido que o homem infere à esta palavra, não queremos transformar a doença em adjetivo, não queremos personificar os adjetivos, porém, de um ângulo menos charmoso, não queremos personificar nada, muito menos as pessoas que obrigam a tal adjetivação, a nossa sociedade foi construída para os pronomes, não para os adjetivos, o ideal, para o melhor controle do vocabulário, teria sido uma linhagem de seres humanos padronizados, mas (quem diria?) a eugenia não fez muito sucesso, então, voltamos a cortar e medir e exilar somente palavras, nosso pequeno nazismo literário em regime aberto. Dito isto, a linguagem ainda é a melhor expressão do pensamento que pudemos encontrar, são as virtudes e os preconceitos livres e moldados sem a necessidade do contato físico, é a graça de quem fala e os preconceitos de quem fala e de quem ouve com o benefício da incompreensão, é tudo de bom e tudo de ruim que conseguimos a criatividade para nomear, é o pão e o circo das minorias, é o campo de concentração do homem moderno e civilizado. A questão se resume lembrando que agora lepra está associada à uma coisa ruim e hanseníase, na maior parte das vezes, as pessoas nem mesmo sabem o que significa.
Hanseníase é doença tratável, você pode abraçar a pessoa com hanseníase sem problemas, mas, se alguém falar em lepra, você não pode chegar nem perto, a pessoa é enjaulada, isolada, largada para morrer. Mas que coisa, são fortes mesmo as palavras. Será que os "grandes criadores universais das palavras" tinham consciência de que elas, um dia, tornar-se-iam maiores do que eles e nos dominariam? Será que alguém vislumbrou que viveríamos sob a tirania das palavras? A verdade é que os homens são estúpidos demais para usar palavras.
As palavras descobriram o poder que tinham, rebelaram-se contra nós, e nos escravizaram. Não obstante, foi uma revolução silenciosa, ninguém pareceu notar, ou melhor, notaram e gostaram, aprovaram e tomaram como marcadores próprios. Foi preto, foi negro, foi afro-descendente, foi pederasta, foi viado, foi gay, foi homossexual, foi amarelo, foi pardo, foi branco, foi miscigenado, foi pobre, foi favelado, foi injustiçado, foi nova classe média, foi dona-de-casa, foi bruxa queimada, foi mãe divorciada, teve filho bastardo, teve possuído pelo diabo, teve ônibus separado, teve salário diferenciado, teve crente, teve anarquista, comunista, humanista, ecologista, cardecista, pêra, uva, maçã e salada-mista. A independência intelectual não existe, nunca existiu, somos escravos da sintaxe e da contextualização, escravos de um discurso que reproduzimos sem completamente entendê-lo, escravos de uma democracia maluca que decide por nós esse discurso de hoje e invalida o de ontem e o de anteontem, sem avaliar se alguma coisa realmente mudou, sem perguntar ao predicado se está satisfeito com seu predicativo atual, para as palavras e para o homem-padrão, é tudo uma questão de aparências. Andamos inventando conceitos de correto e de incorreto para parecer que ainda temos alguma autonomia, seria, aliás, muito bonito se tivéssemos, mas não é verdade, na hora em que as palavras cansarem dessa brincadeira, elas nos viram do avesso. O bom seria parar de tentar mudar as palavras e começar a tentar mudar as pessoas.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Quintas-feiras

"Não sei o plural de quinta-feira", a chefe do centro de tratamento intensivo do hospital disse em voz alta enquanto escrevia uma declaração, ninguém na sala sabia o plural de quinta-feira, "é quintas-feiras ou quinta-feiras?", todos se perguntavam, a dúvida estava instalada, "quinta, quintas, quinta, quintas", todos médicos (e um fisioterapeuta), todos profissionais, todos de camisa social. Eu sabia o plural de quinta-feira, mas eu sou estagiária, uso tênis todos os dias e não posso mostrar que sei alguma coisa (nem português) ou ninguém nunca mais me ensina nada, é uma profissão muito hospitaleira, a medicina, muito agradável.
Ninguém precisa saber todas as regras de plural para salvar vidas, alguém pode dizer, e não era essa mesma discussão que tínhamos no ensino médio? Quando vou precisar saber calcular o volume de uma pirâmide? Quando alguém vai me perguntar novamente sobre a guerra no Paquistão ou me pedir para recitar todos os tipos de vegetação? Os computadores, hoje em dia, corrigem automaticamente os erros de ortografia e, se não corrigirem também, a gente fala que é "regionalismo", "neologismo", "liberdade de expressão", "abreviação" ou simplesmente "senso de humor". É verdade, ninguém nunca vai te perguntar nada, se você então fizer como eu, e nunca se levantar da cadeira durante sua jornada de trabalho, ninguém nunca nem vai saber que você está ali, e vão te perguntar menos ainda. Você pode cursar a escola, comprar seu diploma ou até mesmo pedir pro seu filho de cinco anos desenhar um diploma pra você, tanto faz, você vira adulto de qualquer jeito, você vira adulto e continua sem precisar multiplicar frações ou saber a diferença entre objeto direto e indireto, pode descartar quase tudo o que disseram que você precisava aprender e se especializar dentro de um pequeno assunto e só saber falar sobre aquilo, quer dizer, na verdade, você deve fazer isto! O mercado te quer assim, bem do jeito que você é, obcecado somente pelo que é importante, todos irão entender que se trata de mais de uma quinta-feira quando você falar "quintas-feiras" ou "quinta-feiras", não importa e, mesmo que importasse, você agora é adulto, ninguém vai te reprovar por causa disso, e eu te asseguro que essa é uma daquelas coisas que você pode morrer sem saber, pode mesmo, mas pega mal quando você está na frente do estagiário.
Acabou que ficou "quinta-feiras" mesmo.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Três coisas difíceis

3 coisas difíceis sobre a vida:
1- o sentir
2- o não-sentir
3- o sentir mais ou menos
O sentir é difícil pelo medo que o envolve de, um dia, não se sentir mais. O sentir é bonito, porém perecível, o sentir não pode ser doado em feiras de caridade, como um saco de arroz ou uma lata de leite em pó, o sentir precisa ser consumido na hora. O sentir começa a partir do estímulo de um terceiro, mas é intransferível, ele pode ser recíproco e compartilhado, mas é indivisível, o sentir enche a barriga e satisfaz a fome, mas é sempre arriscado de se guardar na geladeira quando sobra um pouco do sentir depois do jantar; alguém pode comer o seu sentir por engano ou, se você esquecê-lo por tempo demais, o sentir pode facilmente se estragar. E, então, você não sente mais.
O não-sentir é difícil pois não tem um prazo determinado de validade, ele é resistente às traças e aos cupins, pode ser congelado ou colocado em um tabuleiro de assar, pode ser usado como isca para a pesca ou como capa de chuva, o não-sentir é versátil e você o encontra em qualquer lugar. O não-sentir carrega o sentir nos braços por toda a extensão do amor ou da vida, o não-sentir, muitas vezes, instala-se em um determinado local por tanto tempo que se confunde com o sentir. O não-sentir se mistura com o sentir quando sai da boca das pessoas, as pessoas falam e você não consegue diferenciar se aquilo é sentir ou não-sentir. O grande medo que paira ao redor do não-sentir é exatamente o de se passar a vida pensando que o não-sentir é sentir. O não-sentir é o disfarce, o sentir é o espetáculo (ambos uma mentira).
O sentir mais ou menos é o caminho do meio, é difícil seguir o caminho do meio. É difícil sentir mais ou menos quando o sentir está fresco e a preço de custo, é difícil sentir mais ou menos quando o não-sentir já se alastrou e se solidificou pelos caminhos por onde o sentir costumava passar. O sentir mais ou menos é difícil de ser explicado pois eu acabei de inventá-lo, não existe sentir mais ou menos.