quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Silêncio não é ouro

Depois que o silêncio leva embora a tempestade, você tenta diferenciar as flores e os dias de sol do que realmente foi verdade, solta versos para o vento, para um pedestre estrangeiro, se decompõe em explicações nos braços do dono de um bar, no ombro de uma garçonete infeliz, diz o que faltou ser dito para qualquer um, menos para mim. Não espere que eu acredite em palavras que chegam até meus ouvidos por telefone-sem-fio, é uma brincadeira sem graça aonde as frases nunca chegam ao seu destino totalmente corretas, o que me faz pensar que, desde que saíram da sua boca, já estavam incompletas.
Palavras são difíceis de consertar, é melhor procurarmos um especialista, é melhor você ligar para um bombeiro e pedir que traga super bonder; eu não vou estar em casa quando ele chegar, trate de avisá-lo que o problema dessa vez não é no encanamento, mas sim na sua gramática, pergunte o que pode ser feito para nos ajudar. Mostre-o uma a uma - suas palavras-, mesmo aquelas que eu já sei que são mentira, mesmo aquelas que eu tive vergonha de aceitar, conserte todas, mas não permita que ele use cuspe ou chiclete para remendá-las, assim elas novamente irão se quebrar e, quando eu voltar, quero ter palavras inteiras para iluminar, do início ao fim, o nosso jantar.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Anticoagulante

Acontece assim: eu corto os seus pulsos, a culpa vai parecer toda sua, corto seguindo o curso da artéria radial, quero fazer uma bagunça. Eu gosto de sangue. Eu gosto do seu sangue. Quero beber, colocar em um balde, derramar pela casa. Rolar no teu sangue, é isso o que eu quero. Mergulhar em piscina de plasma e enxergar através do seu vermelho, enquanto você cai debilmente na cama, quero nadar nas suas veias.
Sonho todas as noites em tirar sua vida com os dentes, usar os caninos para te rasgar em todos os pulsos principais. Por você, eu não beberia nada além de sangue, nada além do teu sangue, nem mesmo água, e estou com tanta sede, cinco litros de você só vão servir para engrossar minha saliva, tirar a minha água enquanto você sangra no colchão, mas não me peça para tirar também minhas máscaras, não quero acelerar a desidratação.
Seu corpo já está morto, inerte, pálido, chupei sua carótida como uma tangerina e continuo te deixando sangrar mesmo depois de passado o prazo de validade. Antes de beber, encho as tripas de heparina para te impedir de coagular dentro de mim, é muito do seu sangue para pouco ácido no meu estômago, a qualquer momento posso ter uma indigestão, mas ainda assim quero sua estirpe bem viva no meu esôfago e intestino, meu sangue e teu sangue com apenas uma camada de músculo liso para separar, quero me banhar nas suas feridas abertas para que elas não tenham tempo de cicatrizar.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Proibida a caça de animais silvestres

Aqui na frente de casa tem uma placa com a palavra "habitat" escrita entre aspas para explicar aos cidadãos muito urbanos que o rio, mesmo poluído, abriga um ou outro animal silvestre nas suas margens. Sim, eu sei que é muito difícil se concentrar nos avisos com o esgoto do hotel caindo inteiro no canal, obrigando os carangueijos de concha azul a se esconderem entre fezes e lama, ambas cruelmente da mesma cor.
No verão as águas se enchem de plantas (e eu apenas falei de verão porque estou com muito calor), eu queria tocá-las até meus pais me explicarem que aquelas são espécies que tiram seus nutrientes da sujeira e do lixo, as aparências enganam, às vezes as plantas boas estão completamente contaminadas por dentro; minha família foi meio negligente ao me passar conceitos de beleza interior, eu diria.
As capivaras comem mais dessas algas podres do que deveriam; os misantropos que andam de bicicleta comentam em voz alta como elas seriam mais bonitas se emagrecessem alguns quilos, dez ou doze, quem sabe se caminharem durante a noite, quando as ruas estão vazias, para que capivaras precisam dormir, afinal? Mas espere, não acho que seja de todo o ruim escolher preservar somente as capivaras magras, você aprende a ter prioridades ao longo da vida, quando passa a maior parte do tempo pensando estar doente ou jogando videogame acordado. Meu problema está na necessidade de placas proibindo a caça no meio da cidade, fico imaginando emergentes da barra tomando vinho do porto com cabeças de capivara empalhadas na parede da sala, por isso prefiro não fazer atividade física.