segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Sinestesia

Músicas que ficam com cheiro de gente. Acordes que parecem envolvidos em uma nuvem de perfume conhecido, aquele perfume que um dia já ficou grudado no seu travesseiro. Talvez nem seja perfume, talvez seja o cheiro da pele, isso, o cheiro da pele que se acostumou com as fronhas e lençóis e, por dias, semanas, talvez meses, ficou ali. O cheiro que ficou ali até que você tivesse coragem de trocar a roupa de cama. Trocar a roupa de cama é o momento em que você de prepara para se libertar daquele cheiro, talvez nunca mais senti-lo novamente. Você não espera que ele vá estar em suas músicas também. Não espera ouvir um cheiro, sentir uma música pelo olfato, quase tateando as cifras através de lembranças.
Ensaboar não adianta, o cheiro não está em você, ele faz parte de você. Digo isso com a pele esfolada. Achei realmente que estava em mim. Quis deletar as músicas. Essas músicas insuportavelmente cheirando a gente. Gente mofada, guardada, amassada.
Ouço o cheiro como se o quisesse de volta na gola do meu pijama. Nem uso mais pijama. Parece, na verdade, que o quero em todas as minhas roupas.
Quero mesmo é arrancar um pedaço da música. Rasgá-la como um vestido velho e guardar no bolso. Guardar no bolso e nunca colocar o pedaço de pano com cheiro de pele para lavar. Já lavei uma vez. Não posso correr o risco de perder seu perfume na água corrente de novo. Mesmo que ele esteja apenas em forma de música, mesmo que ele nem exista mais, mesmo que você esteja usando outro perfume agora, que seu cheiro esteja diferente, não me importa. Esse cheiro é meu de novo, se é que já foi meu um dia.
Me contento com a melodia da voz de um cantor qualquer, me contento com a cadência quebrada enquanto não posso ter aquele cheiro velho nas minhas roupas novas, me contento em ouvir palavras que já decorei faz tempo com cheiro que só agora percebi que estava ali, ouvir palavras cantadas em voz rouca com cheiro de você.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Insensata coxinha

Memória aleatoriamente selecionada pela mente ociosa que não me sai da cabeça. A menina que tirava o frango de dentro das coxinhas antes de comer. Todo intervalo ela comprava uma generosa quantidade de coxinhas (muito mais do que eu conseguia comprar em bolinhas de queijo com meus três reais da merenda) e sentava no canto do corredor enquanto conversávamos para dissecá-las, dilacerá-las, tirar o que as tornava coxinhas.
Confesso que ficava com raiva. Falava mal do seu jeito de comer coxinhas pelas costas e toda vez sugeria que comprasse outro salgadinho já que, obviamente, não gostava de coxinhas. Ela insistia que gostava do sabor que o frango deixava na massa da coxinha. Inaceitável, na minha opinião. Você tem que amar a coxinha por tudo o que ela é, não pode simplesmente pegar sua casquinha crocante e desprezar seu conteúdo macio e talvez não tão apetitoso. Além dessa nada inspiradora metáfora, eu tinha raiva porque era meio nojento, imagine os frangos espalhados, deixando o papel e os dedos engordurados, de forma que, toda vez que destruía uma nova coxinha, ela esfregava o frango que ia ser desprezado na borda do saquinho e em seguida lambia os dedos, criando um ciclo de frango, gordura e saliva nada atraente de se observar. Eu sentia que não era obrigada a presenciar tal cena impublicável em um momento tão etéreo do dia quanto a hora do recreio.
Além disso, nessa época da minha vida eu ainda não tinha aprendido a me apaixonar pelas esquisitices de cada um. Não que olhando para trás agora eu me consiga definir isso como uma mania charmosa, claro, mas esse é um caso muito particular, na maioria das vezes consigo sim transformar TOC em charme. Enfim, você só aprende a amar o próximo pelos seus pequenos defeitos depois de uma determinada cota de bullying que sofre na vida e, na quarta série do fundamental, eu estava do outro lado do palco do sofrimento escolar, inventando apelidos e colando papel cartão em mochilas alheias.
Pois é, nessa época, se eu fosse uma coxinha, eu seria aquela última da bandeja, que estava tão apetitosa quanto as outras mas que, como ninguém comeu, ficou murcha e perdeu o dourado cativante que faz com que as pessoas queiram comprá-la.
No ginásio eu estava num estágio mais avançado ao de uma coxinha murcha, eu me tornei um risole de fim de festa. E foi então que aprendi a observar mais as pessoas. Foi então que aprendi a me apaixonar exatamente por tudo aquilo que se tornava motivo de piadas para os outros pré-adolescentes sedentos por uma humilhação pública. Foi então que comecei a não julgar alguém apenas por achar estranho a forma como lida com suas coxinhas.
Não é justo rir por detrás de portas de madeira, não é decente definir o sentido de ausência como padrão para todos. Talvez a falta do frango fosse a plenitude da sua coxinha, e talvez eu até esteja falando isso sem um pingo de ironia...
Ou talvez eu esteja superanalisando um comportamento mimado de filha única de colégio particular da zona sul do rio de janeiro como algo realmente digno de sequer ser analisado. Enfim, eu teria comprado bolinhas de queijo.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Silêncio pra falar de amor.

Eu não sei falar de amor. Não acho que saiba viver o amor também, mas falar dele é ainda mais difícil. O descontrole, a falta de foco, o estômago petrificado. Tudo muito desconfortável para ser traduzido em palavras.
Estranho como algo que provoca tantas sensações desagradáveis possa ser tão desejado. Desejado pelos outros. Eu nunca desejei o amor. Nas minhas brincadeiras de boneca mais inocentes ninguém jamais via Barbie se casando com Ken. Minhas Barbies eram promíscuas, alcoólatras, travestis, deficientes físicas, tudo, menos apaixonadas. Minhas coleguinhas de play ficavam horrorizadas, convidavam minha Barbie para um cruzeiro no novo barco de plástico que ganharam de natal. Um cruzeiro que era para ser de sol e água de côco e eu transformava em um transatlântico para tráfico de prostitutas, mais pela minha falta de compreensão da palavra TRANSAtlântico do que por qualquer outra coisa, mas ainda assim, um grande desvio.
Logo pararam as brincadeiras, saíram as Barbies e começaram os flertes no play com os meninos que voltavam suados do futebol. Eu achava legal, achava bonito correr com garrafinhas de água para recebê-los fora da quadra, mas, quando as amiguinhas começavam a escrever cartinhas de amor e dizer o quanto estavam apaixonadas, eu me colocava a fazer colares de miçanga pra vender na porta do supermercado da rua. Ficava desconfortável com aquelas demonstrações de amor tão escancaradas, tão sinceras, tão fora da minha realidade.
Isso começou a mudar no dia que resolvi mandar meu primeiro cartão para um menino. Eu não gostava dele, mas queria fazer parte de todo esse clube de meninas que morriam de amores pelos cantos. Era seu aniversário e ele tinha ido na casa da minha avó para ter uma aula particular de matemática ou algo assim. Achei que ia ser uma ótima idéia lhe mandar um cartão com um QUIZ: "VOCÊ GOSTA DE MIM? ( ) SIM ( ) COM CERTEZA ( ) MUITO". Coloquei em cima do seu caderno e me escondi atrás do sofá (pois é), apenas para desejar morrer quando ele me devolveu o cartão com uma nova opção criada a caneta e marcada de outra cor para reforçar a idéia "(x) NÃO". Minha primeira rejeição. De caneta vermelha ainda. Meio triste que ele achou que precisava usar vermelho. Enfim, não preciso nem dizer que fiquei apaixonada. Pedia pra minha avó tirar fotos dele sempre que ia ter aula e guardava todas no meu diário, escrevia seu nome de batom no espelho, tudo isso. E então, no dia que ele resolveu que ia me chamar pra tomar um sorvete eu simplesmente... brochei. Disse que não gostava mais dele, e não gostava mesmo. Nunca tinha gostado. Estava encantada pela idéia de não poder tê-lo pra mim, nunca tinha sido amor, eu só achava que era. Era cedo, eu ainda podia ficar confusa quanto ao conceito de amor, né?
Mas depois disso, minhas inadequações e insucessos amorosos só foram crescendo e se desenvolvendo, permitindo que minhas inseguranças e neuroses se multiplicassem como gremlins atirados na água. Continuei confusa em relação ao amor.
Acabei descobrindo o que era. Acabei vivendo com algumas borboletas no estômago por tempos. Apesar de não ter sido o que eu queria, fui obrigada a viver com elas. E ainda sou. Me apaixono por quem não quero e jamais desejo aqueles que demonstram gostar de mim de alguma forma. Mas ainda não sei explicar o que é. Ainda não sei falar sobre ele, ainda preferia que ele não existisse, ainda acho mais bonito viver uma série de desventuras sexuais do que uma doída história de amor (sempre é meio doída), mas ele está aí, todo dia, brincando de me fazer de boba.
Não sei falar de amor, talvez nunca aprenda, mas sei sonhar. Nossa, quão pateticamente utópica e ridiculamente idealista foi essa frase? Mas é verdade. Sei viver o desconforto com altivez dentro do meu inconsciente. Sei acreditar que um dia vou parar de acreditar na rejeição como um gatilho para o amor. Já aprendi a colocar minhas Barbies para dormir de conchinha depois de longa viagem no mar. Só me falta alguém que não cobre de mim o que eu não sei, que é falar. Preciso de alguém que aceite meu amor torto sem perguntas, sem cobranças, sem toda a carga emocional dessa realidade chata e sufocante.