domingo, 27 de março de 2011

Leite com biscoitos

E nesses tempos tão estranhos, esmigalho os biscoitos com as mãos e os jogo no copo. Assisto enquanto eles se desmancham e vão tornando o leite em volta cada vez menos branco. Como de colher. Colher de café para fazer durar mais. Sempre quero que dure mais.
Aproveito a liberdade da solidão para não me importar em pegar um guardanapo quando sinto o leite escorrendo pelo canto dos lábios. Limpo com as costas das mãos e seco na fronha do travesseiro. O travesseiro no qual encosto a cabeça para dormir.
Você nunca pode comer na rua do mesmo jeito que come em casa. Você não deveria compartilhar esses hábitos tão particulares também, mas às vezes você conhece algumas pessoas que parecem entender, e então você fala. Você conta suas nojeiras mais secretas, sem imaginar que, aqueles com olhos tão compreensivos, nunca comeram uma coxinha de frango sem usar talheres.
Pessoas que fingem te entender, mas que não conseguem disfarçar a expressão de asco ao te ouvir.
Na rua você tem que estar com o cabelo penteado, com as roupas sem manchas, com os cotovelos longe da mesa e os garfos e facas alinhados em volta do prato. Na rua você tem que ser alguém bem educado, bem resolvido, bem vestido.
Por isso, não quero te encontrar em um restaurante. A rua tira um pouco do que cada um é de verdade. Eu já separei uma enorme pilha de filmes para assistirmos, mas você vai ter que parar de me oferecer seus lenços para eu limpar meu queixo sujo de molho de tomate. Estamos em casa, de pijamas listrados, com golas duras de pasta de dente. Mangas compridas limpas não têm a mesma graça. Usar talheres em casa não sacia a fome. Você dizer que me entende pelas fotos que mostrei é hipocrisia. Você não vai me entender até que seja obrigado a espanar as migalhas de pão da minha cama com o antebraço. Por favor, senta, deita, se enrola na coberta e deixa que amanhã o lençol já vai estar seco.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Se você não me conhece

Se você não me conhece até agora significa apenas que não tem frequentado as confeitarias certas. Chegue no fim da tarde, arraste a cadeira vazia na minha frente e sente-se sem pedir licença. Eu não vou me incomodar em dividir meus biscoitos amanteigados com você, sempre peço o suficiente para duas pessoas. Meu café já está esfriando de tanto esperar. O garçom sempre se esquece de me trazer adoçante, resolvo deixar amargo, a culpa que o pratinho de biscoitos desperta em mim impede que eu despeje saquinhos de açúcar na minha caneca. Também não gosto da bagunça de papel rasgado na minha mesa, melando a capa do meu livro, convidando formigas a subirem nas páginas.
Espero que você não se importe em me esperar terminar esse capítulo. Detesto interromper a leitura no meio de um parágrafo, sempre acho que é no final daquela frase que estou lendo que está a informação mais importante da história, me odiaria se tivesse que pegá-la pela metade uma próxima vez.
Eu tenho algumas revistas na minha bolsa, posso deixar em cima da cadeira, talvez assim você se sinta mais à vontade para chegar perto de mim. Peça um café para minha boca não ser a única amarga durante a conversa, me olhe nos olhos mas não repare nas minhas olheiras, invente uma história que não aconteceu se lhe faltar assunto, eu prometo que não vou dizer nada se perceber que você está mentindo. Eu minto bastante também, espero que você goste de mim logo de cara para acreditar em todas as minhas mentiras, rir de todas as minhas tentativas para te impressionar, pegar na minha mão pálida de nervoso antes que minha pele comece a sangrar de tanto eu coçar.
Espero que sua letra seja feia e que me escreva cartas, que cante mal no chuveiro e sussurre canções antigas para me fazer dormir, que queime ovos fritos e seja do tipo que só come pizza com catchup. Eu não faço questão de conversas inteligentes, passo o dia inteiro me fingindo de culta, gostaria de ouvir alguns erros gramaticais ao chegar em casa, trocar alguns solecismos durante o jantar, cuspir migalhas de pão no seu jornal enquanto você me conta do seu dia.
Você não me conhece ainda, é verdade, mas eu não sou difícil de encontrar. Estou sempre deitada na varanda ouvindo rádio, tentando te escrever um poema, logo para você que eu nem sei o nome, pra você que fica entrando em bares e botequins e nunca pede um pão de queijo no balcão da loja em que eu estou sentada.
Eu vou ler mais um capítulo, sempre olhando por cima dos óculos para não perder o momento em que você entrar. Prometo fingir que não percebi que era você quando você entrar.

terça-feira, 8 de março de 2011

Ateísmo emocional

Quase nunca me interesso por alguém. Gostar das pessoas nunca foi um processo natural pra mim. Sou desajeitada para fazer carinho. Minha mão ou pesa demais ou fica leve a ponto de ninguém sentir. Sou dura para dar abraços, nunca sei se meus braços devem ir por cima ou por baixo. Sempre acabo sentando na cadeira em frente em vez de me encostar ao lado para conversar de perto. Minhas piadas são sem graça e meus comentários desnecessários.
Talvez eu fique nervosa, talvez eu queira impressionar demais, ou talvez eu simplesmente não me importe.
Não existe muito espaço na sociedade para pessoas que não se importam. Não se importar corresponde ao não acreditar em Deus no mundo dos sentimentos. Se eu precisasse traduzir essa minha falta de interesse de alguma forma, diria exatamente que sou uma agnóstica do amor. Não me digo atéia pois, assim como em relação à questões espirituais, não descarto totalmente a possibilidade de que exista, mas sim, se houvessem apenas dois lados, o do crer e o do não crer, eu ficaria com o que eu chamo de ateísmo emocional.
O grande problema é que os ateus são parte de uma das minorias que mais sofre preconceito nessa sociedade predominantemente crente em que vivemos. Ateus sofrem mais repulsa do que prostitutas e usuários de crack (sério) e, dessa forma, não seria diferente em relação aos que não acreditam no amor. Se Deus é amor, como todos já ouviram dizer por aí, você não acreditar nesse último o torna alguém tão desprovido de caráter, perante a sociedade, quanto aqueles sem religião.
Demorei muito tempo para sair desse armário da descrença. Mais pela falta de argumentos para me explicar do que pelo medo de julgamentos. Sim, mea culpa, eu deixei de acreditar no amor sem dá-lo muitas chances. Mas, hoje em dia, não me adianta muito ouvir palestras sobre a pessoa certa e sobre a beleza de se construir um relacionamento. Está tudo trancado na minha grande caixa de dúvidas que guardo embaixo da cama e que torço para que algum homem do saco leve por engano. Algumas pessoas simplesmente não tem tantas chances para dar.
Eu ainda estou aberta a me apaixonar, assim como estou aberta à possibilidade de Deus me chamar pra ter uma conversa numa clareira no meio do deserto para me fazer acreditar nele, já disse que não sou xiita em relação a nada. Porém, tudo para mim parece utópico demais, idealizado demais, enjoativo como um vidro de cereja em caldas.
Me interesso nas pessoas, nas suas histórias, nas metáforas e outras figuras de linguagem que elas têm para me oferecer, porém é difícil eu me interessar por alguém. Gostaria que ninguém me dissesse no que eu devo ou não devo acreditar a não ser que tenha como me provar errada. Espero realmente que alguém me prove errada.