sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano novo

Hoje eu fechei os olhos e me lembrei do seu sorriso. Foi assim mesmo, eu nem estava pensando em você nem nada, simplesmente pisquei e você apareceu sorrindo na minha cabeça, foi tão inesperado que tive que rir sozinha da travessura do meu subconsciente, mas então passou a graça e eu quis te ver, precisava ter certeza que eu não estava te inventando, que você existe de verdade. Eu queria muito te ver antes de viajar, antes do ano virar, e olha que eu nem ligo muito pra essas festas de fim de ano, a cidade fica com um cheiro todo diferente, já reparou no cheiro da cidade? Todo ano fica assim, esse cheiro de final medíocre para um filme longo demais, e eu nunca tenho vontade de fazer nada, exceto agora que eu quero te ver. Acho que você foi a única coisa boa que me aconteceu esse ano, e é estranho pensar que você nem aconteceu pra mim, pelo menos não completamente, mas foi suficiente para eu querer te ver logo quando eu não faço questão de ver ninguém.
Enfim, apesar de toda a minha conversa inebriante com sua caixa postal, eu provavelmente não vou conseguir te ver antes de ir, um mês não é tanta coisa, eu sei, você não precisa me dizer, mas daí eu vou com essa dúvida, vou ficar todo o mês e sabe lá mais quantos dias até você querer me ver de novo (estou fazendo um drama bem pequenininho só pra você dizer que quer me ver sim, mesmo que você não queira, ou não diga, estou imaginando esse diálogo e estou feliz com ele) me perguntando se o que eu lembrei te pertence mesmo ou se eu já distorci tudo para adequar à minha memória; acho que você devia vir até aqui para tirar de mim essa dúvida, pode vir agora, estou acordada.
Não fique pensando que eu estou com saudade, eu só queria muito, muito, te ver.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Pode ser?

E daí se eu gosto de sangue?
E daí se minha analista insiste em me perguntar se eu já me apaixonei e eu nunca sei o que responder e acabo dizendo que não?
Às vezes digo que sim e a conversa fica estranha, estranha por que eu não consigo deixar de pensar em quem eu amei. São fantasmas, eu sei, mas são meus fantasmas e gosto que eles me rodeiem durante o dia, gosto de ver os rostos dos meus fantasmas se deformando pelo meu afastamento físico com os donos de seus corpos, mudando de traços pela brincadeira do esquecimento, até que se tornam caricaturas completamente distorcidas daquilo que um dia eu conheci tão bem e, ainda assim, gosto que eles estejam ali, que participem comigo de cada pequena atividade, que continuem me conhecendo, mesmo que somente na realidade paralela que criei para nós, eu e meus amores-fantasmas. Forço uma intimidade com ilusões que querem ir embora, é verdade, diversas vezes já me pediram a carta de alforria, mas são minhas ilusões, só vou deixá-las partir quando eu não tiver mais o que contar, quando eu não tiver mais vontade que me conheçam; venha, ilusão, é inútil resistir, sente-se, fiz macarrão e comprei vinho branco para o jantar.
Daqui de onde estou sentada não vejo problema nenhum em gostar de sangue. A vida é suja assim mesmo e, dentro dela, eu prefiro ficar com o que é mais cru, com o que é mais líquido e colorido. Limpas são apenas as ilusões que, apesar de também me agradarem muito, não servem para andar de mãos dadas na rua, nem para dar beijos no cinema; o limpo e o bonito não satisfazem por completo, o sujo precisa fazer o contrapeso, eu fico com o sujo, não me importo, quero mesmo é ter a liberdade de escolhê-lo.
E daí se eu não quiser falar de amor?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Ossos do ofício

Às vezes imagino meu corpo sem a pele, as órbitas vazias de olho, o nariz afilado sem cartilagem e sem também nenhum sinal de que algum dia em mim existiram orelhas (para serem mordidas, para ouvirem sussurros); somente os ossos e os dentes podres pendentes da mandíbula quebrada da caveira (não importa o que se faça em vida, os dentes sempre apodrecem).
Arranco mentalmente cada camada. A epiderme sai com uma facilidade surpreendente, expondo o tecido adiposo incomodamente amarelo e macio e os músculos atrofiados, que exibem o mesmo aspecto de carne fresca das peças de gado penduradas por ganchos na vitrine do açougue; tiro os nervos, os vasos, deixo a linfa incolor transbordar pela fáscia friável do abdome enquanto me desfaço gentilmente do subcutâneo e, finalmente, alcanço os ossos, a única coisa que resta depois dos anos, quando resolvemos matar a saudade e abrir o caixão.
Gosto de tentar imaginar o contorno do meu crânio sem o disfarce de pele que o encobre para garantir ao corpo seu humilde espaço na normalidade. Deslizo a mão por baixo dos cabelos e sinto os relevos e as depressões sob o couro móvel e me agrada projetar na mente a imagem que me perseguirá pela eternidade, o último resquício de matéria que continuará me prendendo à terra, mesmo quando eu já não mais tiver essa necessidade - de estar em algum lugar, de ser alguma coisa. É um alívio insólito mentalizar meu esqueleto, exibir em um rolo de filme imaginário a minha própria decomposição, assistir larvas cilíndricas e aneladas esgueirando-se por entre as catacumbas da medula óssea, torcendo para que familiares não tenham o mau gosto de jogar sobre mim tristes flores de finados e punhados gordos daquela terra pálida e lazarenta que acomoda os parasitas.
Não me olhe desse jeito, não me agrada também abordar o assunto, sou do tipo que vira o rosto ao passar pelo cemitério, mas como nada pode saciar as dúvidas a respeito do destino da alma (que alma?), ao menos me acalma programar a ordem de exoneração de cada órgão aprisionado por detrás das grades de arcos costais; quero dar de comer aos vermes primeiro o coração, por último o pâncreas ou o rim esquerdo, assim não me parece tão ruim.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Pé direito

a casa parece mais escura
quando você
desmorona ou
vai embora

palavras pesadas
quebraram
o telhado e
destruíram igualmente
a sala e
o quarto

ando sobre pedaços
de corpos e
não me importo;
quero mais é pisar
em uma poça de sangue
que não seja
minha