A cabeça nasce com um buraco no meio, dois, na verdade, seis, se quisermos entrar em detalhes. A cabeça nasce com espaço para crescer mais. Chegamos ao mundo com alguns reflexos, muita fome e a cabeça aberta, aberta em uma via de mão dupla, aberta para o bom, o mau e o feio, aberta para os sorrisos e para as pancadas, aberta para os lobos e para os macacos. Por esse motivo, seguramos as crianças em lençóis apertados, a cabeça é aberta, se cair, amassa.
A cabeça permanece aberta até mais ou menos a metade do primeiro ano de vida, um ano e meio para a liberdade completa do fluxo de informações, para o amor ir e vir conforme sua vontade, para se decidir se fica todo do lado de fora ou se permite que um pouco permaneça lá dentro. E, então, prazo concluído, a cabeça fecha, a criança cresce, a cabeça cresce junto, mas cresce já fechada, com apenas os buracos das narinas e ouvidos para deixar a novidade entrar, muito se perde nas tortuosidades do conduto auditivo e no oco do nariz, não é mais como nos tempos de cabeça aberta em que tudo podia entrar ou sair pelo meio, através da aflitiva e subestimada moleira, o crescimento cria um filtro para a entrada e a saída de informações e de sentimentos e de secreções, o crescimento é rígido e mais demorado de se contornar, é preciso forçar o que se quer colocar na cabeça com certa insistência, é preciso limpar as orelhas com algodão seco e assoar o nariz durante o banho, os canais precisam estar livres depois que a cabeça se torna lacrada.
Mais complicado do que introduzir algo por entre esses ossos fundidos e pouco aerados é retirar o que foi enfiado ali dentro, o cérebro é repleto de labirintos, ou melhor, mergulhando no clichê da cabeça e da infância, o cérebro é um grande labirinto, e o que foi lançado em seu meio dificilmente sai ou retorna ao exterior completamente intacto, é preciso chacoalhar demais a cabeça, ou serrar o osso em partes e abrir tudo de novo, fazer buracos com parafusos e martelos, ou mesmo usar da força para parti-la pela metade, mas a verdade é que ninguém considera muito a ideia de reabrir a cabeça, a concepção geral é de que é a parte do corpo mais dura e também mais delicada, uma vez já completamente suturada, as pessoas têm medo de abri-la outra vez, só o fazem nos casos extremos de câncer ou acidente, de resto, a cabeça encontra-se cronicamente fechada e, sendo assim, deve-se tomar um mínimo de cuidado com as ideologias e os amores que são sugados para dentro, a cirurgia não parece realmente uma opção, e é arriscado esperar que o tempo faça tudo se confundir e se perder por entre os milhares de sulcos e reentrâncias, pois, aliás, nada se perde, tudo se transforma, não é mesmo?
domingo, 28 de julho de 2013
sábado, 6 de julho de 2013
Coração na cabeça
Às
vezes não consigo dormir de tão forte que bate o coração. De início, pensei ser
um sintoma de amor, eu sentia o amor, conseguia segurá-lo pelo braço, soletrar o
seu nome, beijar o seu rosto, lia poemas de saudade e ficava feliz em deixar o
coração me bombear. Ainda pensando que era amor, eu não tomava calmantes ou
pílulas analgésicas, mesmo quando o pescoço doía e o sangue arranhava, eu
simplesmente me resignava aos seus efeitos colaterais e permitia que
ele batesse no ritmo que bem quisesse, chocando-se acelerado ou perdendo um ou
dois compassos.
Mas,
então, acabou. Acabou o amor e o coração continuou batendo, batendo forte,
socando o peito, estourando os ossos, roubando o ar. Fui fazer exames. Deixei
que um médico de cabeça branca e cintura larga escutasse o meu coração.
“Está
batendo tum-tá?”, perguntei.
“Está.
Ouça.”, ele aumentou o volume do monitor e eu ouvi: tum, e, depois de um tempo:
tá.
Parecia
estar tudo bem.
“Mas
esse tum não está muito longe do tá?”, duvidei.
“Está
normal.”, disse o médico.
“Mas
não está demorando demais?”, insisti.
“Você
faz exercícios?”, o médico perguntou.
“Não.”
“Bom,
de qualquer forma, isso não tem muita importância.”
“Ia
bater mais rápido se eu fizesse exercícios?”
“Não,
mais devagar.”, o médico respondeu com um olhar confuso.
No
ínterim da consulta, meu coração sapateava com violência, agora certamente quebrou
uma costela, pensei. Com discrição, encostei a mão na lateral do corpo e
examinei a contiguidade de cada osso, inteiro, inteiro, inteiro, inteiro,
inteiro, inteiro, inteiro, senti sete costelas inteiras, percebi o coração
fibrilando de leve, como se caçoando da minha ingenuidade. Expliquei ao médico
como me atrapalhava para dormir, o coração.
“Não
é a cabeça?”, perguntou o médico.
Encarei
o homem com perplexidade, a cabeça, não, não era a cabeça, eu sinto o coração
bater, ouço o barulho do coração a noite inteira, deve estar dilatado,
estourado, arrebentado, não é na cabeça que ele bate, é no peito, no tórax, se
o senhor quiser o nome correto, está batendo agora, como pode ouvir, e à noite
bate ainda mais forte. Fui para casa.
Passou
um mês e resolvi amar de novo, e o coração não parou nem por um segundo, bateu
forte como no primeiro amor, talvez mais, visto a fragilidade que ganhou nas
paredes após tantas batidas, meu coração não discriminou um amor do outro, não
separou nem mesmo o amor da falta dele, continuou batendo descontrolado como um
órgão degenerado, ou cronicamente insuficiente, ou de um paciente infartado,
diriam os românticos que bate como se amasse a todo tempo, mas o médico estava
certo, afinal, é na cabeça. Não, o coração bate incoerentemente forte no peito
mesmo, mas o amor, este é só na cabeça.
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