sábado, 30 de abril de 2011

Sopa de macarrão

E daí minha mãe me disse que eu não posso mais fugir. Da realidade, do espelho, das pessoas, da varanda. Tentei explicar que é só o que eu sei fazer, tentei tricotar uma boa desculpa para me justificar, para me aquecer, para enrolá-la. Mas ela conhece minha pobreza de argumentos, minha falta de traquejo, minha vontade de enfiar a cabeça embaixo da terra e esperar o dia terminar - ou os dias - e não me deixa falar, não me deixa sequer abrir a boca sem me alfinetar, sem martelar meu dedo mindinho com o passado.
Meu passado cheio de flores de plástico e chocolates derretidos. Cheio de camisetas suadas e mãos geladas por baixo da mesa, de passeios pela praia e conversas abafadas por música alta, de contas de celular que vou pagar até me aposentar. Histórias transbordando de "quases". Quase não fugi. Mas fugi.
Meus dedos indicadores são calejados de ansiedade, de impaciência. Minha mão inteira é áspera de uma vida me esfregando em fronhas, arrastando a cama de um lado para o outro tentando fugir da insônia. Fugir me deixou áspera, eu acho. "Posso parar a qualquer momento" e lá estou eu fugindo de novo. Da análise, do telefone, do reencontro de colégio, do amor, do merthiolate que arde, de mim.
Deixo que as pessoas erradas abram meu coração. Até olhei no livro do plano de saúde, mas quando cheguei pra cirurgia faltava o anestesista. E eu fugi quando senti o primeiro talho do bisturi. Confundiram morfina com soro fisiológico e me cortaram mesmo assim. Chego em casa sangrando e mostro o corte que trago no peito, bem limpo, bem fácil de costurar, mas minha mãe pega a linha preta - a da minha cor acabou - e costura um grande mapa em minha pele, o mapa de onde eu não devo mais ir? Ou o mapa para onde devo fugir? Não sei, fechei os olhos nessa hora, nem quis saber o significado. Só sei que transformo amor em passado, como quem coloca caldo demais no macarrão e o transforma em sopa.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Salão de festas

No meio do salão vazio, o rapaz a segurava pela mão, fazendo-a rodopiar desordenadamente para todos os lados, agarrando-a como se fosse um saco de batatas entre um movimento e outro.
A platéia de um só membro a observava de longe, dispensando comentários desnecessariamente ofensivos aos outros bêbados ali sentados, comentários maldosos recheados de inveja ante um desapego que jamais alcançaria - sóbria. A platéia era apenas eu, ou assim parecia. Era, na verdade, um lugar que não exigia espectadores, aonde aqueles que se colocavam nessa posição - de espectador - eram desprezados com simpatia pelos que repetidamente compravam alegria no bar. A sobriedade, entretanto, me obrigava a isso, a observar, a criticar, a querer também perder a consciência, as inibições e até mesmo o bom senso, se não fosse pedir demais.
E ela ali, irrefreável, envolta em sua soberba gordura, sentindo-se uma modelo magrela em um provador feito de espelhos, travestindo-se de Kate Moss em um par de jeans minúsculos, deixando a auto-confiança encolher seus braços e enxugar sua imagem que, do contrário, ocuparia todo o salão, mesmo esse estando vazio, mesmo esse estando desconfortavelmente livre da possibilidade de esbarrões.
Me sentiria mal por ela, tão apertada em sua blusa de malha, tão enormemente sem jeito e sem graça. Me sentiria mal, sim, se não estivesse ocupada demais sentindo inveja.

domingo, 10 de abril de 2011

Sem bateria

A tela preta engordurada de tanto passar os dedos. Reflete a luz da televisão, reflete meus olhos caídos, reflete o ninguém que lembrou de mim naquele momento. E ele treme, o celular, digo. Deixo cair, a bateria para um lado, o aparelho para debaixo da cama, o coração para dentro do estômago.
Vou recolhendo os pedaços, remontando as peças, a única que não encontrei foi minha artéria aorta que se desprendeu quando a tela piscou, mas isso não importa agora, depois eu procuro melhor, deve estar no vão do sofá de novo (todas as coisas perdidas, de um jeito ou de outro, acabam indo parar no vão do sofá). Só preciso reconstruir o telefone, ligar de volta antes que pensem que não quis atender. Que você pense, claro, se for outra pessoa não me importa o que pense.
Vejo a abertura patética, de jujubas coloridas, que meu celular exibe ao ligar. Uma tentativa de adoçar a vida essa minha fixação com balas, disse minha psicóloga uma vez. Deixei de acreditar na psicanálise, mas ainda acredito quando você diz que vai ligar. Você diz que vai ligar e acho que só pode ser você. Deveria ser.
- Pai, você pode parar de me mandar mensagens que a bateria do meu celular está acabando?
- Mas filha, eu só queria falar do seu presente.
- Depois você me conta, você sabe que detesto aniversário.
- Não posso falar agora já que estamos nos falando?
- Mas já não disse que a bateria está acabando? Estou esperando uma ligação.
- Ligação importante?
- Importante pra mim, oras. Pai, por favor, desliga esse telefone que eu não estou encontrando o carregador.
- Posso te ligar amanhã, então?
- Meu deus, amanhã a gente vê, desliga isso que está com dois pontos agora! Olha o que você fez, tinham três pontos antes de você ligar!
- Tudo bem! Eu desligo, parabéns viu, eu te amo.
- Tá, tá, tá. Um beijo, então.
E desligo. Desesperada com os dois pontos piscando no alto da tela, confundindo os estalos do ventilador com uma nova mensagem na caixa de entrada. Mas nunca tem mensagem. Quer dizer, às vezes até tem, mas nunca suas.
Mas está tudo bem. Mesmo que você não ligue, hoje ou qualquer outro dia, mesmo que você gaste sua bateria com outras pessoas, eu vou continuar guardando esses dois pontinhos pra você. É bom que assim não ocupo muito da sua noite, e aí você não enjoa de mim, te roubo apenas uns minutinhos, deixo os outros pra você gastar com quem tenha mais bateria pra você. Com quem tenha menos quilômetros de distância de você. Com quem tenha você, e não apenas o seu número de telefone.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Sem saber

Eu disse que não sabia o que fazer. Sentei na escada de costas para o vento, deixando a franja cobrir meus olhos. Eu realmente não sabia o que fazer. Eu queria falar, ms não tinha mais o que dizer - ou tinha medo.
Olhei para o chão, cheio de terra, cheio de marcas de pés. Fiquei olhando. Olhei até que nada mais consegui ver. Tentei levantar mas tinha esquecido como, então continuei do jeito que estava, com os cabelos na cara sem enxergar. Continuei do jeito que estava até que ele se irritou comigo. Se irritou com a minha preguiça, com a minha falta de vontade.
Ele me mandou sair dali, mas eu não queria, eu não sabia para onde ir. Ele continuou falando, mas eu não conseguia mais ouvir - ou eu não queria.
Eu vi a luz da rua acender. Nem vi quando o céu apagou. Ele deve ter visto, mas eu não vi.
A escada é de todo mundo, não sei porque ele me manda sair. Não tenho mais paciência para perguntar - ou talvez me falte a voz - e ele também não se incomoda em me explicar. Eu continuo sem saber, e continuo ali.
O frio começa a me incomodar, ele está de casaco e se recusa a me emprestar, talvez eu devesse mesmo sair dali. Ele acha que saí porque ele mandou, tentei dizer que foi o frio, mas ele não acreditou - ou não me ouviu.
Saí. Logo depois quis voltar, mas não me lembrava como e ele não quis me ensinar. E foi embora. Foi embora sem me ajudar.
Fiquei sozinha, agora de frente para o vento, com os cabelos voando e as bochechas rosadas pelo frio. Queria que alguém estivesse ali, mas não sabia quem chamar - ou esqueci. Então fiquei ali, esperando alguém passar. E continuo esperando. Estou cansada de esperar.