segunda-feira, 23 de abril de 2012

Chega de saudade

Essa é a última vez que eu escrevo para você voltar. Está certo que das outras vezes rasguei as cartas antes mesmo de assinar, mas você deveria saber, deveria ter previsto, deveria ter sentido minhas palavras urgentes viajando sobre os fios de cobre que enfeitam as calçadas e misturando-se à luz da sua casa, deveria tê-las visto escorrendo junto com a água do seu chuveiro e lavando o seu cabelo; contaminei todos os rios e as praias da cidade com minhas tóxicas palavras de amor. Os peixes estão morrendo, meu amor está consumindo todo o oxigênio que existe no mar, o mau cheiro já viajou pelo ar até a sua rua, mas você simplesmente fechou as janelas e ligou os ventiladores de teto, nem mesmo percebeu que os pescadores não fazem mais a feira-livre dos domingos. Me desculpe o incômodo, mas a putrefação foi o melhor jeito que encontrei para me comunicar.
Eu não vou pedir outra vez para você ficar. Não, é verdade, eu nunca de fato te pedi tal coisa, sua memória continua excelente, mas você não olhou nos meus olhos, não cheirou minhas roupas, não entrelaçou nossos dedos? Achei que tudo o que eu dissesse seria um desagradável pleonasmo às súplicas do meu corpo. Pensei que meu amor assim tão espalhado pela sala te faria ir embora ainda antes. De qualquer forma, você foi. Sempre sofri antecipadamente pelo vazio que se instalaria quando você fosse embora. Você foi. Não sei se foi realmente pelo meu amor ou se você inventou algum outro motivo estúpido para me manter inocente. Às vezes preferia não ter te dedicado amor nenhum, outras vezes penso que foi mesmo melhor que eu o tenha te dado por inteiro para que você o guarde, o deixe mofar, o dê de comer aos mendigos da praça, faça com ele o que bem desejar, desde que o leve para longe de mim. Continue indo embora de mãos dadas com o meu amor, não vá pela areia e cuidado com os peixes que você resolva comer no caminho, fora isso, pode ir sem se preocupar, eu, como sempre, desisti de pedir para você voltar.

domingo, 1 de abril de 2012

Não vou pensar

Eu não vou pensar em você hoje. Não vou pensar nos seus olhos fechados, e depois não vou pensar neles abertos. Não vou imaginar como fica a minha própria imagem de cabeça para baixo, quando projetada na sua retina. Não vou pensar no diâmetro das suas pupilas e muito menos na coloração das suas mucosas. Não vou pensar na profundidade das suas órbitas ou na inervação motora das suas pálpebras. Os movimentos dos seus olhos podem pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
Eu não vou pensar nas rachaduras dos seus lábios e nem nos sorrisos que escapavam por ali, não vou verificar se tem cianose, não vou me preocupar com a sua hidratação, nem mesmo vou pensar no sabor da sua saliva e em tudo o que eu esqueci de dizer, não vou me lembrar das últimas palavras que eu ouvi de você - nem das primeiras. A sua voz pode pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
E, finalmente, eu não vou pensar no seu calor intoxicante entupindo meus poros, eu não vou pensar nas suas roupas amassadas e quentes caindo no chão, eu não vou pensar na sua febre nem no meu termômetro, eu não vou pensar em encostar em você. Eu não vou pensar em você. Hoje.