domingo, 10 de abril de 2011

Sem bateria

A tela preta engordurada de tanto passar os dedos. Reflete a luz da televisão, reflete meus olhos caídos, reflete o ninguém que lembrou de mim naquele momento. E ele treme, o celular, digo. Deixo cair, a bateria para um lado, o aparelho para debaixo da cama, o coração para dentro do estômago.
Vou recolhendo os pedaços, remontando as peças, a única que não encontrei foi minha artéria aorta que se desprendeu quando a tela piscou, mas isso não importa agora, depois eu procuro melhor, deve estar no vão do sofá de novo (todas as coisas perdidas, de um jeito ou de outro, acabam indo parar no vão do sofá). Só preciso reconstruir o telefone, ligar de volta antes que pensem que não quis atender. Que você pense, claro, se for outra pessoa não me importa o que pense.
Vejo a abertura patética, de jujubas coloridas, que meu celular exibe ao ligar. Uma tentativa de adoçar a vida essa minha fixação com balas, disse minha psicóloga uma vez. Deixei de acreditar na psicanálise, mas ainda acredito quando você diz que vai ligar. Você diz que vai ligar e acho que só pode ser você. Deveria ser.
- Pai, você pode parar de me mandar mensagens que a bateria do meu celular está acabando?
- Mas filha, eu só queria falar do seu presente.
- Depois você me conta, você sabe que detesto aniversário.
- Não posso falar agora já que estamos nos falando?
- Mas já não disse que a bateria está acabando? Estou esperando uma ligação.
- Ligação importante?
- Importante pra mim, oras. Pai, por favor, desliga esse telefone que eu não estou encontrando o carregador.
- Posso te ligar amanhã, então?
- Meu deus, amanhã a gente vê, desliga isso que está com dois pontos agora! Olha o que você fez, tinham três pontos antes de você ligar!
- Tudo bem! Eu desligo, parabéns viu, eu te amo.
- Tá, tá, tá. Um beijo, então.
E desligo. Desesperada com os dois pontos piscando no alto da tela, confundindo os estalos do ventilador com uma nova mensagem na caixa de entrada. Mas nunca tem mensagem. Quer dizer, às vezes até tem, mas nunca suas.
Mas está tudo bem. Mesmo que você não ligue, hoje ou qualquer outro dia, mesmo que você gaste sua bateria com outras pessoas, eu vou continuar guardando esses dois pontinhos pra você. É bom que assim não ocupo muito da sua noite, e aí você não enjoa de mim, te roubo apenas uns minutinhos, deixo os outros pra você gastar com quem tenha mais bateria pra você. Com quem tenha menos quilômetros de distância de você. Com quem tenha você, e não apenas o seu número de telefone.

16 comentários:

  1. Leio seu blog igual tias solteironas assistem novela, fico torcendo e desejando que o próximo post seja sobre isso ou sobre aquilo.Gosto das descrições, dos detalhes, enfim gosto do jeito que vc escreve, quase sempre me identifico. Alias depois do Ateísmo Emocional senti que mudou um pouco o cerne dos post.

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  2. sem comentários mais uma vez, carol! muito bom...

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  3. GOSTO DE SEU ESCREVER, DE SEU JEITO DE SE EXPRESSAR E ESSE DE HJ É MUITO BOM, COM DIÁLOGO E TUDO.
    PARABÉNS E FICO SEMPRE NA ESPERA PARA LER O PRÓXIMO.

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  4. Carol sua linda, o q aconteceu com vc?

    kd aqueles posts sem noção lotados de absurdos engraçados? quer dizer, eu gostei desse novo estilo tambem, deve refletir como voce se sente... acho ótimo!! mas o que aconteceu pra vc mudar tanto??? bjs e continue ahazando

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  5. Incrível como você escreve tão despretensiosamente e consegue efeitos incríveis. Eu tenho a gramática normativa na ponta da língua, mas jamais serei capaz de escrever tão bem quanto você. Parabéns! M.

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  6. nossa, que coisa fantástica!!!
    parabéns, menina! você é incrível mesmo!

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  7. descreveu um antigo "relacionamento" meu.

    emocionadissima.

    obrigada pelo momento.

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  8. Carol, sua linda, texto ótimo como todos os outros :)Gosto muito de toda essa sensibilidade que vc deixa tão nítida em tudo o que escreve. E, quanto à ligação, fica tranqüila, são essas esperas e vontades que fazem a gente entender um tanto de coisas que sente.

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  9. Caraca Carol!
    mas esse texto foi lindo mesmo, me identifiquei tanto..
    leio sempre seus textos, mas esse me deu realmente vontade de vir comentar. Parabéns pelos textos viu sua linda!

    bj

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  10. Poxa, adorei este texto. Eu passo por coisa parecida. =)

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  11. gosto da simplicidade com que você escreve. amei esse texto, é daquele tipo de texto que muita gente pode se identificar. parabéns Carol! (:

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