quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Bala de tamarindo

Na rua em que eu moro tem um homem que vende balas de tamarindo. Ele anda numa cadeira de rodas e os saquinhos de bala ficam espalhados numa bandeja de madeira em seu colo. Nem sempre morei nessa rua, mas em todos os meus (quase) vinte anos lembro de, frequentemente, passar por ele, no mesmo lugar, com os mesmos cabelos brancos, com praticamente a mesma quantidade de saquinhos na bandeja.
No início eu era muito pequena para até mesmo verbalizar um suposto desejo por balas de tamarindo, mas meu pai passava pelo moço da cadeira de rodas e comprava um ou dois saquinhos, sempre trocando algumas palavras simpáticas e dando-lhe umas moedas a mais do que o necessário. Ela estava longe de ser minha bala preferida, sempre deixando a língua meio escura e com um gosto metálico no final, nenhuma criança escolheria essa bala como primeira opção. É o tipo de coisa que você come quando se esgotam todas as alternativas e o desejo por algo doce supera qualquer inibição gustativa.
Entretanto, eu só saia de carro à noite com meu pai pelas balas de tamarindo. Por todo o ritual de passar por aquela rua, de cumprimentar o cara na cadeira, de observar como ele deslizava habilidoso por entre os carros para chegar próximo à janela do carro quando via que era meu pai quem estava dirigindo. Vez ou outra ele até enfiava a cabeça timidamente dentro do carro pra me olhar encolhida no banco de trás, esperando que meu pai jogasse o saquinho no meu colo para que pudéssemos voltar pra casa.
Balas de tamarindo e churraquinhos de gato nos arcos da lapa, essas eram minhas pequenas paixões infantis. Eram as coisas pelas quais eu ficava a semana inteira esperando. Os churrasquinhos, apesar de mais deliciosos, não tinham nenhum vendedor bacana que me chamasse a atenção, o legal era mais o clima da lapa que, naquela época, não tinha nem um pouco da fineza que hoje já consegue se encontrar num canto ou outro do bairro. Eram só travestis e prostitutas andando em meio à fumaça do churrasquinho, esperando o que quer que fosse na esquina enquanto eu descia do carro pra pegar nos palitos quentes e engordurados e lançar olhares curiosos diretamente do glamour do meu guarda-roupa do Walt Disney.
Hoje em dia não como mais churrasquinhos na lapa. Hoje em dia, na verdade, minhas memórias da lapa são um tanto quanto embaçadas (fumaça de churrasquinho, mãe, nada de álcool). Porém, o moço da bala de tamarindo ainda está aqui, na minha rua, todo dia. Me assustei logo que me mudei e voltei a passar por ele, tão esquecido no meu passado, tão exatamente igual ao que eu me lembrava. Juro que acho que ele me reconheceu, e me reconhece toda vez que passo de óculos escuros fingindo que nunca comi uma de suas balas de tamarindo.
Odeio pensar que ele me reconhece e vê o quanto eu mudei da menina do banco de trás do escort vermelho, o quão distante eu estou de tudo o que aquela criança era. Odeio pensar que ele consegue enxergar essas mudanças e que pode, assim, perceber o quão nada ele mudou.
Deve ser tão chato quanto ser uma árvore, ou um poste de luz, ou um poodle de dezessete anos com catarata nos dois olhos, ser o cara da bala de tamarindo. Deve ser chato e assustador ter que ver pessoas crescendo e mudando e vivendo enquanto você se mostra a exceção da regra das mudanças da vida e só fica ali, dia após dia, vendendo balas de tamarindo. Socializando com um ou outro executivo solidário, mas só se preocupando em arrumar os saquinhos na bandeja e lubrificar as rodas da cadeira. Não mudar deve assustar muito mais do que mudar o tempo inteiro.
Estranho que digo isso no meio de uma empatia extrema pelo moço da bala de tamarindo. A cada dia que passo pelas costas de sua cadeira consigo me identificar mais. Nossa, se me perguntassem há uns anos atrás eu jamais diria que um dia me colocaria no mesmo microcosmo que o moço da bala de tamarindo. Bem bittersweet mesmo, linda bala de tamarindo que de bala foi promovida à metáfora.

10 comentários:

  1. Texto muito bom, muito bom mesmo.
    Texto digno de publicação.
    Texto cheio de emoção.
    Sua sensibilidade aflora na sua lembrança de
    criança, do homem, da bala, da cadeira de rodas e da maneira que seu pai tratava o vendedor.
    Parabéns pelo belo texto que me fez chorar.

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  2. pqp, muito lindo, emocionate mesmo. Parabéns!

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  3. lindo o texto, mas se te faz sentir melhor, pensa que ele também deve ter uma família, problemas, amigos, felicidades e etc... a vida dele não precisa ser aquela monotonia aparente.

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  4. belo texto, mas o que te leva a pensar que a vida dele continua a mesma? As maiores mudanças começam de dentro para fora, APARENTEMENTE lhe parece o mesmo de quando vc era criança, mas será?

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  5. Assim é se lhe parece...?
    As aparências enganam....
    A primeira impressão é a que fica?
    quem possui a verdade?
    quantas verdades existem?
    Só para te estimular a pensar mais e escrever mais...linda!

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  6. Carola, um dia você também vai chegar na idade de parar de mudar =)

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  7. Lindo texto Carol *-*
    Você escreve muito bem, parabéns!
    Me identifico muito com as coisas que você escreve

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  8. é muito gostoso ler seu blog! vc manda muito bem!! parabéns

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