domingo, 14 de abril de 2013

Sobre a lepra e a língua portuguesa

Hoje em dia, ninguém mais perde pedaços do corpo por causa de lepra, quer dizer, de repente até perde, se não se cuidar, mas, hoje em dia, a gente também não chama mais a doença de lepra, é hanseníase o nome socialmente aceitável, a gente não quer estigmatizar, não queremos deixar ninguém marcado. As pessoas já estão marcadas de um modo ruim pela própria doença, não queremos marcá-las de um modo ainda pior pelas palavras, faz sentido, não queremos que elas sintam-se leprosas, no pior sentido que o homem infere à esta palavra, não queremos transformar a doença em adjetivo, não queremos personificar os adjetivos, porém, de um ângulo menos charmoso, não queremos personificar nada, muito menos as pessoas que obrigam a tal adjetivação, a nossa sociedade foi construída para os pronomes, não para os adjetivos, o ideal, para o melhor controle do vocabulário, teria sido uma linhagem de seres humanos padronizados, mas (quem diria?) a eugenia não fez muito sucesso, então, voltamos a cortar e medir e exilar somente palavras, nosso pequeno nazismo literário em regime aberto. Dito isto, a linguagem ainda é a melhor expressão do pensamento que pudemos encontrar, são as virtudes e os preconceitos livres e moldados sem a necessidade do contato físico, é a graça de quem fala e os preconceitos de quem fala e de quem ouve com o benefício da incompreensão, é tudo de bom e tudo de ruim que conseguimos a criatividade para nomear, é o pão e o circo das minorias, é o campo de concentração do homem moderno e civilizado. A questão se resume lembrando que agora lepra está associada à uma coisa ruim e hanseníase, na maior parte das vezes, as pessoas nem mesmo sabem o que significa.
Hanseníase é doença tratável, você pode abraçar a pessoa com hanseníase sem problemas, mas, se alguém falar em lepra, você não pode chegar nem perto, a pessoa é enjaulada, isolada, largada para morrer. Mas que coisa, são fortes mesmo as palavras. Será que os "grandes criadores universais das palavras" tinham consciência de que elas, um dia, tornar-se-iam maiores do que eles e nos dominariam? Será que alguém vislumbrou que viveríamos sob a tirania das palavras? A verdade é que os homens são estúpidos demais para usar palavras.
As palavras descobriram o poder que tinham, rebelaram-se contra nós, e nos escravizaram. Não obstante, foi uma revolução silenciosa, ninguém pareceu notar, ou melhor, notaram e gostaram, aprovaram e tomaram como marcadores próprios. Foi preto, foi negro, foi afro-descendente, foi pederasta, foi viado, foi gay, foi homossexual, foi amarelo, foi pardo, foi branco, foi miscigenado, foi pobre, foi favelado, foi injustiçado, foi nova classe média, foi dona-de-casa, foi bruxa queimada, foi mãe divorciada, teve filho bastardo, teve possuído pelo diabo, teve ônibus separado, teve salário diferenciado, teve crente, teve anarquista, comunista, humanista, ecologista, cardecista, pêra, uva, maçã e salada-mista. A independência intelectual não existe, nunca existiu, somos escravos da sintaxe e da contextualização, escravos de um discurso que reproduzimos sem completamente entendê-lo, escravos de uma democracia maluca que decide por nós esse discurso de hoje e invalida o de ontem e o de anteontem, sem avaliar se alguma coisa realmente mudou, sem perguntar ao predicado se está satisfeito com seu predicativo atual, para as palavras e para o homem-padrão, é tudo uma questão de aparências. Andamos inventando conceitos de correto e de incorreto para parecer que ainda temos alguma autonomia, seria, aliás, muito bonito se tivéssemos, mas não é verdade, na hora em que as palavras cansarem dessa brincadeira, elas nos viram do avesso. O bom seria parar de tentar mudar as palavras e começar a tentar mudar as pessoas.

3 comentários:

  1. Um assunto pertinente, abordado de forma incomum e belíssima. Achei perfeito. Falando em palavras, tu lida muito bem com elas

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  2. brilhante!devia mandar para o editorial do Globo fazendo com que mais pessoas possam ler sobre preconceito tão em alta hoje e abordado de forma diferente. Só se conhece a força do preconceito quando se é vítima. Parabéns!

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  3. Perfeito migs!! Sempre sua fã! <3

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