domingo, 12 de agosto de 2012

Sobre Paris

No início desse ano eu fiz uma viagem para a europa que durou mais ou menos um mês. Eu não comentei sobre isso porque voltei para casa com a sensação de que não tinha prestado atenção em nada. O que foi bastante verdade. Eu experimentei vários sabores de sorvete, eu ouvi vários pedaços de história, eu tomei banho em vários lugares inconvenientes, mas eu não prestei atenção em muita coisa. Quando a gente viaja, a gente perde a capacidade de observar, eu acho (a maioria das pessoas perde, pelo menos). A observação vem da exaustão, quer dizer, observar, prestar atenção, é exaustivo. Observar não é sinônimo de parar em frente a um quadro e admirar, ou de suspirar ante uma paisagem bonita, ou de olhar. Observar é se cansar na frente do quadro, é descobrir o tédio de uma obra de arte que você, a princípio, tinha achado interessante, é desistir de fotografar a paisagem dos cartões-postais porque já enjoou de tanto olhá-la. Não dá tempo de observar quando você é turista. Você quer ser turista e fazer coisas de turista, quer parecer simpático na hora de pedir informação, quer pedir informação toda hora, quer esconder o mapa e tentar se virar com a língua estranha, quer comprar objetos que você nunca vai usar, quer tirar fotos que você nunca vai olhar. É bom querer ser turista. Ser turista é ver um monte de coisas velhas pela primeira vez. Ser turista é ser um pouco criança de novo.
É bom ser turista, mas é ruim voltar para casa sem nada na cabeça, só com as lembranças superficiais e meio tortas que vão se deformando mais e mais a cada vez que você tenta recontá-las. Eu, frequentemente, voltava a ficar triste pensando que tinha perdido a minha oportunidade de prestar atenção em lugares aonde eu provavelmente não poderia voltar. Ficava triste até que achei um caderno que eu levei para a viagem aonde está um parágrafo pequeno sobre o que eu achei de Paris. Eu não esperava gostar nada de Paris, eu não tirei fotos, eu não esperava sequer me lembrar de Paris, mas eu, hoje, com tão pouco entusiasmo pelas coisas, gosto de ter esse parágrafo. Paris foi o único lugar em que eu fui sozinha, passei lá os últimos dois dias da viagem e, só agora, quase oito meses depois, eu percebi que prestei atenção em alguma coisa, e ter prestado atenção por dois dias me deixou feliz.
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"Paris tem alguma coisa de esquecida e de muito povoada que a faz bonita, o metrô fica cheio, mas as ruas são vazias, Paris tem moradores logocentristas que gostam de usar a metalinguagem e que ainda pensam que a feiúra do corpo representa a feiúra da alma, Paris parece que gosta de criar almas. Em Paris, você vê a nudez feminina eternizada nas varandas, exposta nos habitantes, mesmo quando estes estão cobertos de casacos, Paris fica muito fria no inverno, mas é essencialmente feminina, vive da simbiose entre estátuas e mulheres, tem uma iluminação leitosa por toda parte e, às vezes, você sente o cheiro até da água. Somente os ricos esnobes e metidos (e que querem aparecer para os amigos) falam que Paris tem um cheiro fedido, Paris tem um cheiro forte de todas as coisas, essa é a verdade, mas "forte" não é necessariamente ruim, você só tem que aprender a separar os cheiros, separar os adjetivos, em Paris é tudo uma questão de linguística."

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Seis


Às vezes meu corpo inteiro dói na hora de respirar, e aí, então, eu sei que estou pensando em você. Que engraçado, nosso reconhecimento agora é feito pela eletricidade dos impulsos dolorosos, pelo choque dos nervos mais expostos, aqueles mesmos nervos que encostamos sem querer nas quinas das mesas e que nos trazem inesperada agonia. O nervo fica latejando por um tempo até passar, eu fico também – latejando –, uma vez, duas vezes, três vezes, você não vai abrir a porta? Meu corpo está vazio e dói. Já passou aquela inflamação da qual eu tanto estava reclamando, minha pele, inclusive, nunca esteve tão branca. Estou perdendo a cor como se tivesse mergulhado em um balde de cloro, pode perguntar para qualquer um, não estou exagerando. Estou em despigmentação contínua. Meu corpo está tentando me curar de você, mas, que incompetente, só me faz empalidecer, e doer. Não é uma dor espiritual, preciso que essa parte você entenda bem, não quero projetar em você alguma suposta culpa por lacerar minha alma ou qualquer coisa dramática assim, o que eu sou por dentro está intacto (ou tão intacto quanto a poluição do ar e os excessos do cotidiano permitem que esteja), eu nunca deixei que você chegasse até lá. O que dói é a minha superfície, o revestimento dos meus órgãos e as células que já morreram e que eu não deixo irem embora, você sabia que a cada mês a pele inteira se renova?, ela se ocupa com a divisão, mas de vez em quando dói mesmo, e eu nem preciso pisar em pregos nem nada. Meus joelhos também já não dobram com muita facilidade, meu pescoço faz um barulho incômodo sempre que eu preciso olhar para o lado, meus pulmões rasgam o diafragma toda vez que querem expandir, e como expandem estes pulmões, são quase dezenove mil e duzentos rasgos por dia, vinte e oito mil e quinhentos se você for contar a madrugada, e é isso o que mais me dói – ou o que dói de verdade. Então, quer dizer, se eu for falar com a maior sinceridade, não me dói tanto assim a pele, o baço ou a falta que você me faz, a única coisa que me dói é respirar.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Bem simples

A vida não é simples. Não é simples, não é simples, não é simples, pronto, neguei a simplicidade da vida três vezes, não sei se isso significou alguma coisa para você, mas não adianta você me mandar olhar o mar, dar uma volta na praia ou passar filtro solar, eu não vou mudar de opinião. Tudo bem, a vida pode não ser simples, mas precisa mesmo ser complicada?, você vai perguntar, pois eu digo que sim, tem que ser complicada! E muito! Quanto mais impossível de se desentranhar das complicações da vida, melhor.
Eu não quero que ninguém me mande seguir em frente, eu não quero limpar a minha mente, não quero sorrir para estranhos na rua, não quero acordar e me dar bom-dia, não quero desperdiçar meu bom-humor com a minha família. Não quero amar as pessoas como elas são, as pessoas são muito chatas, quero mais é que elas mudem. Imagina, se todo mundo inventar de ter uma personalidade não vai ter mais ninguém para participar dos reality shows.
Eu gosto de olhar para trás e me atracar com o passado, não me importo em me despedir duas vezes e ainda acordar do seu lado, não quero esquecer quem me fez sofrer, aliás, quer saber, volte aqui, me faça sofrer de novo, me faça sofrer demais. Não, eu não quero aprender com os meus erros, muito obrigada, pretendo errar quantas vezes por dia eu for capaz, vamos competir para ver quem erra mais.
Eu só vou dar atenção para o começo e o fim, tirem da minha frente esse meio e, por favor, parem de me falar para ter coragem, parem de supor que eu preciso de paz, não estou nem aí para os pequenos detalhes, quero somente os gestos grandes, quero problemas enormes, quero arrombar sua casa e destruir a mobília, quero virar marginal e, quem sabe, arruinar nossas vidas. Porque, você sabe, a vida não é simples, e eu faço questão de que ela continue assim.

sábado, 2 de junho de 2012

O segredo

Lista de coisas fáceis de acreditar:
1. banhos quentes
2. cheiro de gente
3. cortinas fechadas
4. membros amputados

Lista de coisas difíceis de acreditar:
1. dentes perfeitos
2. contas matemáticas que tendem ao infinito
3. amor verdadeiro
4. poetas felizes

Os livros de auto-ajuda que me perdoem, mas não acreditar é fundamental.

domingo, 27 de maio de 2012

Rio de Janeiro

O meu medo é que a gente deixe essa semana passar, que o mês inteiro passe, dois meses, um ano, sabe lá quantos anos a gente vai deixar passar. O meu medo é que a gente mude. Quer dizer, é claro que vamos mudar, a questão não é essa, minha preocupação é que é possível que deixemos esse tempo passar indefinidamente até eu não mais saber da sua vida, até você também não saber nada da minha, até sermos pessoas diferentes, separadas por incontáveis mudanças, milhares de minutos de distância, que nos impedirão de, algum dia, voltarmos para as pessoas que fomos, ou que quisemos ser - ou que pensávamos querer ser.
Nós não vamos nos esbarrar por aí como acontece nos filmes. Eu não vou ter a oportunidade de ver a sua felicidade de relance, de tramar contra o seu novo romance, de perguntar se ainda existe uma chance. Isto não é uma comédia romântica, não temos direito à rimas e à saudades. O traçado urbano abaixo de nós foi desenhado com o intuito de impedir o nosso encontro. Nosso primeiro esbarrão foi uma falha do acaso. Os outros que seguiram foram pura teimosia. A cidade foi construída pensando na nossa separação e, daqui a pouco, após uns tantos quadrados riscados do meu calendário, após eu perder a conta das tantas páginas e dias que se passaram, seremos aquelas pessoas as quais estamos destinados a nos transformar, com novos pensamentos, com ideias diferentes sobre o capitalismo, sobre as mudanças climáticas, sobre os personagens das nossas séries favoritas, estaremos em universos paralelos, separados por treze ou dezesseis estações de metrô que nunca se cruzam.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Chega de saudade

Essa é a última vez que eu escrevo para você voltar. Está certo que das outras vezes rasguei as cartas antes mesmo de assinar, mas você deveria saber, deveria ter previsto, deveria ter sentido minhas palavras urgentes viajando sobre os fios de cobre que enfeitam as calçadas e misturando-se à luz da sua casa, deveria tê-las visto escorrendo junto com a água do seu chuveiro e lavando o seu cabelo; contaminei todos os rios e as praias da cidade com minhas tóxicas palavras de amor. Os peixes estão morrendo, meu amor está consumindo todo o oxigênio que existe no mar, o mau cheiro já viajou pelo ar até a sua rua, mas você simplesmente fechou as janelas e ligou os ventiladores de teto, nem mesmo percebeu que os pescadores não fazem mais a feira-livre dos domingos. Me desculpe o incômodo, mas a putrefação foi o melhor jeito que encontrei para me comunicar.
Eu não vou pedir outra vez para você ficar. Não, é verdade, eu nunca de fato te pedi tal coisa, sua memória continua excelente, mas você não olhou nos meus olhos, não cheirou minhas roupas, não entrelaçou nossos dedos? Achei que tudo o que eu dissesse seria um desagradável pleonasmo às súplicas do meu corpo. Pensei que meu amor assim tão espalhado pela sala te faria ir embora ainda antes. De qualquer forma, você foi. Sempre sofri antecipadamente pelo vazio que se instalaria quando você fosse embora. Você foi. Não sei se foi realmente pelo meu amor ou se você inventou algum outro motivo estúpido para me manter inocente. Às vezes preferia não ter te dedicado amor nenhum, outras vezes penso que foi mesmo melhor que eu o tenha te dado por inteiro para que você o guarde, o deixe mofar, o dê de comer aos mendigos da praça, faça com ele o que bem desejar, desde que o leve para longe de mim. Continue indo embora de mãos dadas com o meu amor, não vá pela areia e cuidado com os peixes que você resolva comer no caminho, fora isso, pode ir sem se preocupar, eu, como sempre, desisti de pedir para você voltar.

domingo, 1 de abril de 2012

Não vou pensar

Eu não vou pensar em você hoje. Não vou pensar nos seus olhos fechados, e depois não vou pensar neles abertos. Não vou imaginar como fica a minha própria imagem de cabeça para baixo, quando projetada na sua retina. Não vou pensar no diâmetro das suas pupilas e muito menos na coloração das suas mucosas. Não vou pensar na profundidade das suas órbitas ou na inervação motora das suas pálpebras. Os movimentos dos seus olhos podem pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
Eu não vou pensar nas rachaduras dos seus lábios e nem nos sorrisos que escapavam por ali, não vou verificar se tem cianose, não vou me preocupar com a sua hidratação, nem mesmo vou pensar no sabor da sua saliva e em tudo o que eu esqueci de dizer, não vou me lembrar das últimas palavras que eu ouvi de você - nem das primeiras. A sua voz pode pertencer à qualquer um enquanto eu não estiver pensando em você.
E, finalmente, eu não vou pensar no seu calor intoxicante entupindo meus poros, eu não vou pensar nas suas roupas amassadas e quentes caindo no chão, eu não vou pensar na sua febre nem no meu termômetro, eu não vou pensar em encostar em você. Eu não vou pensar em você. Hoje.