quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quarta bulha

O ciclo cardíaco tem duas fases, uma de contração e outra de relaxamento, eu te amo, ele contrai, eu te esqueço, ele relaxa, você vai embora, ele contrai, ele se debate, ele quer sair pela boca e ir bater na sua porta, você não existe, ele relaxa, ou bate normal, em tuns e tas sem compromisso, em tuns e tas daqueles tempos de carnaval. Mas aí você existe, ou existiu, não sei se existe mais já que não tenho coragem de discar o seu número, que apaguei da agenda mas ainda sei de cor, e não sei como avisar ao coração que ele precisa relaxar só mais uma vez, para deixar um novo sangue entrar, um sangue que não contenha mais hemácias carregadas com aquele gás carbônico que roubei da sua respiração, esse sangue com seu ar não quer sair, e meu coração vai se dilatando para me manter viva, crescendo e tentando te abrigar, você que luta tanto para não ficar ali.
Em uma radiografia, os médicos ficam loucos, o coração ocupa metade do meu corpo. "Não percebi que estava crescendo tanto, doutor, que horror!". Mas veja só, que engraçado, agora são quatro as vezes que meu coração bate por você.
Mas então, na sua falta, preciso me contentar em cheirar pétalas de rosa, borra de café e alguma cocaína, não entendo por que você não tenta se esconder em mim, ao invés de fugir, ao invés de mandar que eu me cale quando peço-lhe que fique, por favor, e deixe que eu te mostre o desvio de septo que construí para guardar o seu rancor.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Parede feita de chão

A parede da minha sala é feita com pedras do chão da rua. Duas avenidas e três praças me encaram na vertical, com seus pedaços encaixados, confundindo cola com gravidade.
Às vezes me esqueço que é parede e erro o caminho. Ando em direção à porta e, de repente, me encontro no teto. E, então, despenco, sem graça, segurando o cós da calça enquanto vou recolhendo as unhas e dentes que perdi na queda. Por favor, não vá me dizer que eu subi na parede porque quis.
Perdi as profundidades, e a realidade eu comi com um pão. Me desequilibro nas pedras, rachadas e mal coladas. Me perco em casa. Enfio o dedo na tomada e tropeço no fio da televisão. Vejo os olhares tortos de quem come com calma na mesa da cozinha. Talvez a casa só esteja rodando em volta de mim (ou talvez eu que esteja rodando em volta da casa).
Quero mostrar pra você o que eu vejo agora que meus óculos ficaram presos no lustre. Deixe que eu me explique antes de me mandar descer e esquentar a sopa - esquentar não, ferver - para matar até os últimos resquícios de bactérias e sentimentos e lembranças que ainda me permito guardar.
Fico de olhos fechados, torcendo para que eles não quebrem ao meio como o resto de mim. Talvez não exista mesmo mais o que falar, não agora que percorro tantas ruas entre o chão e o teto, não agora que cavei buracos por toda a cidade para me criar uma parede.
Você pode me vendar e contar até dez, me empurrar e segurar os meus pés. Não me importa mais o que faça, comigo ou com suas garotas de programa, depois que construí minha parede com pedras de rua, em qualquer lugar que eu esteja, me encontro no chão.