Hoje em dia, ninguém mais perde pedaços do corpo por causa de lepra,
quer dizer, de repente até perde, se não se cuidar, mas, hoje em dia, a
gente também não chama mais a doença de lepra, é hanseníase o nome socialmente aceitável, a
gente não quer estigmatizar, não queremos deixar ninguém marcado. As
pessoas já estão marcadas de um modo ruim pela própria doença, não
queremos marcá-las de um modo ainda pior pelas palavras, faz sentido,
não queremos que elas sintam-se leprosas, no pior sentido que o homem infere à esta palavra, não queremos transformar a
doença em adjetivo, não queremos personificar os adjetivos, porém, de um
ângulo menos charmoso, não queremos personificar nada, muito menos as
pessoas que obrigam a tal adjetivação, a nossa sociedade foi construída
para os pronomes, não para os adjetivos, o ideal, para o melhor controle
do vocabulário, teria sido uma linhagem de seres humanos padronizados,
mas (quem diria?) a eugenia não fez muito sucesso, então, voltamos a
cortar e medir e exilar somente palavras, nosso pequeno nazismo literário em regime aberto. Dito isto, a linguagem ainda é
a melhor expressão do pensamento que pudemos encontrar, são as virtudes
e os preconceitos livres e moldados sem a necessidade do contato
físico, é a graça de quem fala e os preconceitos de quem fala e de
quem ouve com o benefício da incompreensão, é tudo de bom e tudo de
ruim que conseguimos a criatividade para nomear, é o pão e o circo das minorias, é o campo de
concentração do homem moderno e civilizado. A questão se resume
lembrando que agora lepra está associada à uma coisa ruim e hanseníase,
na maior parte das vezes, as pessoas nem mesmo sabem o que significa.
Hanseníase
é doença tratável, você pode abraçar a pessoa com hanseníase sem
problemas, mas, se alguém falar em lepra, você não pode chegar nem
perto, a pessoa é enjaulada, isolada, largada para morrer. Mas que coisa, são fortes
mesmo as palavras. Será que os "grandes criadores universais das
palavras" tinham consciência de que elas, um dia, tornar-se-iam maiores
do que eles e nos dominariam? Será que alguém vislumbrou que viveríamos
sob a tirania das palavras? A verdade é que os homens são estúpidos
demais para usar palavras.
As palavras descobriram o poder que
tinham, rebelaram-se contra nós, e nos escravizaram. Não obstante, foi
uma revolução silenciosa, ninguém pareceu notar, ou melhor, notaram e gostaram, aprovaram e tomaram como marcadores próprios. Foi preto, foi negro,
foi afro-descendente, foi pederasta, foi viado, foi gay, foi
homossexual, foi amarelo, foi pardo, foi branco, foi miscigenado, foi
pobre, foi favelado, foi injustiçado, foi nova classe média, foi
dona-de-casa, foi bruxa queimada, foi mãe divorciada, teve filho
bastardo, teve possuído pelo diabo, teve ônibus separado, teve salário
diferenciado, teve crente, teve anarquista, comunista, humanista,
ecologista, cardecista, pêra, uva, maçã e salada-mista. A independência
intelectual não existe, nunca existiu, somos escravos da sintaxe e da
contextualização, escravos de um discurso que reproduzimos sem
completamente entendê-lo, escravos de uma democracia maluca que decide
por nós esse discurso de hoje e invalida o de ontem e o de anteontem,
sem avaliar se alguma coisa realmente mudou, sem perguntar ao predicado
se está satisfeito com seu predicativo atual, para as palavras e para o
homem-padrão, é tudo uma questão de aparências. Andamos inventando
conceitos de correto e de incorreto para parecer que ainda temos alguma
autonomia, seria, aliás, muito bonito se tivéssemos, mas não é verdade,
na hora em que as palavras cansarem dessa brincadeira, elas nos viram do
avesso. O bom seria parar de tentar mudar as palavras e começar a
tentar mudar as pessoas.
Um assunto pertinente, abordado de forma incomum e belíssima. Achei perfeito. Falando em palavras, tu lida muito bem com elas
ResponderExcluirbrilhante!devia mandar para o editorial do Globo fazendo com que mais pessoas possam ler sobre preconceito tão em alta hoje e abordado de forma diferente. Só se conhece a força do preconceito quando se é vítima. Parabéns!
ResponderExcluirPerfeito migs!! Sempre sua fã! <3
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