domingo, 10 de julho de 2016

Ligue os pontos

Eu ligo os seus pontos, como um passatempo impresso no jornal de domingo ou um jogo complicado que ninguém sabe explicar. 
Você pode pegar o verso da caixa e ler as instruções? 
Não consigo entender as regras do seu dermografismo, as pintas são muitas, digo, os pontos, que são as suas pintas e que eu ligo formando quadrados ou sorrisos. A sua pele inteira me sorri com os rabiscos da unha e eu me incluo em você pelo hábito de te ligar - os pontos. Todos eles, depois de conectados por mim, formam constelações de pintas e de formas geométricas que só eu conheço e que pretendo, um dia, nomear ou vender na internet para que outros possam dar também nomes aos limites do seu corpo pontilhado.
A ligação de pontos despretensiosa, que era para ser uma brincadeira, transforma-se em colonização, te divido em capitanias hereditárias e vou morar na principal; seu corpo, enquanto for meu e suas pintas, enquanto forem pontos, serão considerados um serviço de utilidade pública, não para o uso coletivo, mas para a função de mapa, bem daqueles que ficam pendurados na estação do metrô e que permitem a um estrangeiro perdido encontrar sua estação.
O meu destino final foi um tanto difícil de desenhar, ficou pouco evidente no meio do emaranhado de tantas linhas e traços e pontos que eu liguei e desliguei e fiz com que sorrissem para mim na sua pele, mesmo sem ter lido o manual, mesmo com as peças faltando e as cartas fora do lugar. 
Você pode fazer vinte perguntas para descobrir a minha localização, não estou na sala de jogos, na biblioteca e nem segurando um castiçal na sala de jantar, avance cinco casas, agora volte três, talvez um pouco mais para a direita, fiquei uma rodada sem jogar e acho que me perdi outra vez, vamos, tire a roupa, preciso abrir o meu mapa e te consultar.

sábado, 16 de abril de 2016

Uma história legal

eu deito na cama
murmurando as falas
de cada besteira que
te ouvi contar
quero lembrar dos inícios
e das partes que pareciam pouco
importantes
para quando estivermos de pé
no meio de uma roda de amigos
eu possa pedir
as suas melhores histórias
e te ouvir de novo
como alguém que assiste ao show
da sua banda favorita
com a ilusão orgulhosa de ter sido
o primeiro a descobri-la

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Fevereiro

Você pode me levar para o meio da rua e me deixar parada esperando o carro de som passar ao nosso redor, por cima da gente, por todos os lados, gente que não acaba mais, pulando, suando, jogando papel colorido para o alto e rebolando até o chão, gente bêbada e feliz, gente que preferia estar em casa e gente que não dorme há três dias com as pernas doendo de tanto desfilar na avenida, gente que se ama dividindo a lata de cerveja pra ela não esquentar e gente que se beija apaixonadamente antes mesmo de se conhecer, gente velha e gente nova e gente que se chateia quando os outros param no meio da rua lotada e atrapalham a passagem, gente claustrofóbica como eu e gente como você que traz um punhado de ar fresco para dentro do caos de uma multidão sorridente e desesperada. Você é livre para brincar de carnaval e usar em cada um dos dias uma nova fantasia, livre para comprar tinta vermelha, se enrolar em serpentina e beijar outras mulheres. Você pode ir e pode voltar, quantas vezes quiser, pode comer, dançar, beber, cair e levantar, pode segurar a minha mão e me ajudar a respirar. E você pode porque você é carnaval o ano inteiro, você é aquela batida do surdo que o corpo segue involuntariamente, é bloco de rua, é Marquês de Sapucaí, é o tio sem graça que todo ano quer ver a Mangueira entrar, é o pé imundo depois de pisar em lama e confete, é a purpurina que não sai com o banho, é o ensaio da escola de samba que começa em setembro, você é fevereiro todo mês, o ano inteiro.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Infelizes ingratos

Todos os dias a igreja perto da minha casa bate o sino por volta das seis e quinze da tarde. Nunca é exatamente às seis e quinze, às vezes é seis e dezesseis, seis e dezoito e já chegou ao recorde de seis e vinte e dois. Nunca é antes das seis ou depois das seis e meia, é um pacto velado entre os quatro religiosos habituais e os moradores do quarteirão: bate, bate, bate, bate, nunca contei quantas vezes, mas bate bastante, perturba todo mundo e a vida segue de volta ao normal.
Me impressiona ainda ter que ouvir sinos de igreja descompassados em pleno dois-mil-e-quinze-quase-dezesseis; que marcassem uma hora ou rezassem quietos, curtindo suas próprias preces, como os bons narcisistas-descolados-demais-para-interagir-com-outros-seres-humanos da nova geração, eu penso, mas me pego, vez ou outra, apostando comigo mesma qual será a hora em que vai começar a badalação do dia, deixo afazeres para antes ou depois e aproveito para fazer um lanche bem na hora da bateção, aproveitando para encobrir o barulho do microondas e não ter que dividir a comida.
Hoje o sino não tocou e eu fiquei um tanto desapontada, quis ir lá perguntar se estava tudo bem com o padre ou corcunda de Notre-Dame, oferecer um copo d'água e pedir, encarecidamente, que não saísse assim tão abruptamente da nossa rotina, pois não costumo usar despertadores para dar fim às sonecas da tarde; pensei em pedir que passasse aqui em casa e interfonasse quando preferisse encher a cara com o vinho da comunhão e não estivesse muito a fim de tocar sinos que ninguém presta atenção (eu presto atenção). É estranhamente agradável, em uma vida pautada na desorganização e nos pequenos desapegos diários, se irritar com uma mesma coisa todos os dias.

sábado, 28 de novembro de 2015

O gosto da cura

O seu corpo é gelado somente ali nas beiradas, nas esquinas e dobras de cada dedo, exatamente onde eu pretendo começar meu incêndio, alastrando fogo por toda a parte, aquecendo suas orelhas, chamuscando suas incertezas, te derretendo feito manteiga.
A sua pele dissolve em água fria, como papel ou pastilha efervescente, que você joga em um copo meio cheio - ou meio vazio -, e espera que te cure das dores reais e inventadas ou que faça passar mais rápido os domingos e o meio-dia, que nunca chega quando se quer almoçar.
Eu te quero queimando e efervescendo sem saber o que te acontece. Vou te ensinar a dormir no silêncio e no escuro e te mostrar como se faz para conversar sem usar palavras; vou te esquentar com as mãos e te desmanchar beijo a beijo.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Acesso

quero espetar essa veia
azul e cheia
que você carrega
no braço e
tirar seu sangue
até ter espaço
em você
para mim

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Fim do mundo

Você sabe que o sol vai morrer, em quatro ou cinco bilhões de anos o sol vai apagar, um gigante entediado vai apertar o interruptor do universo e desligar a nossa luz para que possamos dormir, vai levantar o planeta inteiro entre o indicador e o polegar e embalar o nosso sono na palma da mão, vai desejar boa noite, dar um beijo e caminhar por cima das estrelas até nenhuma mais conseguir brilhar.
Toda quarta-feira é dia do mundo acabar, todo mês tem um eclipse raro que só pode ser visto a cada setenta anos, todo ano o inverno fica um pouquinho mais quente - é o sol chegando mais perto para se despedir. E, talvez, o mundo acabe em um sábado e não em uma quarta-feira, eu sei, que injusto a gente ter que trabalhar a semana inteira sem qualquer apocalipse para descansar os pés - e logo no sábado, sábado a gente tinha combinado de tomar aquela cerveja. Fazer o quê?, imprevistos acontecem. Mas não dá pra remarcar? Remarcar o fim do mundo?, não, não dá, vai ter que ser no sábado mesmo. E a nossa cerveja? Pode ser na quarta-feira, o mundo ainda vai estar lá, a gente senta na esquina do seu prédio e olha as estrelas que não foram ainda esmagadas. Quarta-feira eu não posso, enquanto o mundo estiver por aqui, eu acordo cedo no dia seguinte.
Não vou conseguir dormir ou trabalhar essa semana esperando o sol ser levado embora, vou subir no telhado e estender um cobertor para ficar bem de olho nos movimentos da galáxia, não quero perder a melhor parte e ter que assistir a reprise na televisão, quero ser expelida para uma nova dimensão da primeira fileira, com ou sem emoção?, sempre com emoção e, caso mude de ideia ou não tenha outros planos, vou guardar um lugar pra você ver o fim do mundo aqui do meu lado.