segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Infelizes ingratos

Todos os dias a igreja perto da minha casa bate o sino por volta das seis e quinze da tarde. Nunca é exatamente às seis e quinze, às vezes é seis e dezesseis, seis e dezoito e já chegou ao recorde de seis e vinte e dois. Nunca é antes das seis ou depois das seis e meia, é um pacto velado entre os quatro religiosos habituais e os moradores do quarteirão: bate, bate, bate, bate, nunca contei quantas vezes, mas bate bastante, perturba todo mundo e a vida segue de volta ao normal.
Me impressiona ainda ter que ouvir sinos de igreja descompassados em pleno dois-mil-e-quinze-quase-dezesseis; que marcassem uma hora ou rezassem quietos, curtindo suas próprias preces, como os bons narcisistas-descolados-demais-para-interagir-com-outros-seres-humanos da nova geração, eu penso, mas me pego, vez ou outra, apostando comigo mesma qual será a hora em que vai começar a badalação do dia, deixo afazeres para antes ou depois e aproveito para fazer um lanche bem na hora da bateção, aproveitando para encobrir o barulho do microondas e não ter que dividir a comida.
Hoje o sino não tocou e eu fiquei um tanto desapontada, quis ir lá perguntar se estava tudo bem com o padre ou corcunda de Notre-Dame, oferecer um copo d'água e pedir, encarecidamente, que não saísse assim tão abruptamente da nossa rotina, pois não costumo usar despertadores para dar fim às sonecas da tarde; pensei em pedir que passasse aqui em casa e interfonasse quando preferisse encher a cara com o vinho da comunhão e não estivesse muito a fim de tocar sinos que ninguém presta atenção (eu presto atenção). É estranhamente agradável, em uma vida pautada na desorganização e nos pequenos desapegos diários, se irritar com uma mesma coisa todos os dias.