sábado, 17 de março de 2012

E você, já morreu hoje?

A morte é um polímero. É uma combinação de todas as pequenas fatalidades que te trouxeram até o presente dia, das incontáveis vezes em que você teve que morrer para se desprender, desligar, desapegar, crescer. Cada ciclo que se conclui é uma nova morte para a sua coleção. Cada última vez e cada nunca mais te propulsionam um pouco mais para longe do ponto inicial, te preparam um túmulo de pedra gelada aonde você pode largar aquele sonho que acabou, que se realizou ou do qual você desistiu.
Quando te conheci, morri uma vez, encobri com terra a minha realidade de tantas mortes sem importância, quais foram mesmo as causas das minhas mortes de antes?, quando te beijei, morri pela segunda vez, a partir dali não saberia mais viver longe do calor e da umidade, nunca mais me importei com os dias de frio, quando nos casamos em meu pensamento, morri pela terceira vez, foi uma linda cerimônia, uma pena você ter perdido, depois disso eu só conseguia ressuscitar ao seu lado, morria mil vezes durante o dia e me deixava continuar morta até te reencontrar, foi a mais poética de minhas mortes, vivia quase a semana inteira em meu corpo de cadáver, apodrecendo diante da vista indiferente das pessoas (estas preocupadas apenas com a gravidade de suas próprias mortes diárias para prestar atenção no grau avançado de minha decomposição), enquanto esperava o ônibus, cortava as unhas, salgava as batatas e, só então na sua presença, me permitia voltar a viver.
Agora morro novamente. Morro em um ato lento e contínuo. Esta morte se prolonga de modo como se não quisesse me deixar morrer, não desta vez, e equilibro as outras mortes que querem desabar sobre mim enquanto esta não acontece. Espero saber ressuscitar tão bem como você me ensinou.
O bom das lágrimas é que elas não deixam cicatrizes, imagine você, tantas que são essas mortes pelas quais tenho que chorar. Só eu sei quantas mortes eu já morri nesta vida, estou sempre vestida para o próximo funeral.

terça-feira, 6 de março de 2012

Anquilose

A noite me transforma em bloco e, por muito pouco, não chego a ser de carnaval, de rua, de gente. Saio em bloco de mim, com o ranger melódico das articulações inflamadas fazendo as vezes de samba.
A manhã se refresca com a minha rigidez.
Amanhã, com sorte, o cimento já não vai mais estar tão fresco, vai ser mais fácil levantar, vai ser melhor, isto é, se amanhã conseguir evitar o desprazer de vir a existir. O amanhã era muito mais agradável ontem, você vai ter que concordar, quando a gente sabia que ele não existia, quando ele parecia somente mais uma brincadeira da nossa doença, quando o corpo já estava mais curto e macio pelo fim do dia. O amanhã está calcificado na sua presença de hoje, faz uma vértebra consolidar-se na outra para impedir o movimento, impedir que eu caminhe até o dia seguinte, não precisava de ajuda, eu já me arrasto para longe.
Sei que você reserva o futuro especialmente para a morte, está certo, é à ela mesmo que ele pertence, nós temos ainda esses fantasmas de nós mesmos e os glicocorticóides, não precisamos de futuro.
Minha inflexibilidade cresce assimétrica.
O amanhã existe cada vez menos conforme a fusão do nosso eixo axial se torna completa, mas que sorte a nossa.
Minha rigidez se renova pela manhã.