domingo, 26 de fevereiro de 2012

Coração no bolso

Gostaria de colocar o coração no bolso enquanto jogo essas intermináveis partidas de tênis com minhas próprias vísceras. Estou tentando cortar a carne em cubos perfeitos para que você coloque no pão e faça um sanduíche bem torto, cheio de pedaços caindo pelas beiradas; meu estômago mal-passado parece ser o que você mais gosta.
Engoli daquela sua terra com larvas de borboletas e pela minha boca saíram ramos e folhas de bananeira, brotos de feijão presos nas narinas os quais nem mesmo posso me atrever a tirar, pois é falta de educação, “Olhe esta menina sem boas maneiras cutucando o nariz”, “Mas estou apenas tentando me livrar de um broto de feijão que plantei sem querer no estômago”; ninguém acredita e tenho que andar pelas ruas me esquivando dos jardineiros e podadores de árvores para que, meu Deus, não me arranquem o nariz.
Ando, então, aos tropeços, como uma criança que assistiu a um filme de terror desacompanhada e que agora vê atividades paranormais em cada brisa que lhe balança os cabelos. Peço, por favor, para que segurem meu coração enquanto corro atrás do ônibus, para que não deixem que ele caia no chão, mesmo ele não sendo de ninguém, ainda sinto que preciso cortá-lo simetricamente e cozinhá-lo um pouco mais para que quem tome o próximo pedaço não passe mal logo na primeira mordida. Puxe esta árvore que cresceu dentro de mim pelas orelhas, me ajude a devolver os filmes de monstros que aluguei, preciso encontrar alguém que segure meu coração enquanto termino de me escaldar em óleo fervendo para a próxima refeição, alguém que segure meu coração até que eu esteja pronta para voltar e buscá-lo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Sobre o otimismo e as ruas de pedra

Eu conheci um otimista na infância. Ele era um pouco mais baixo do que eu, tinha olhos claros e a pele vermelha, falava baixo e nunca mostrava os dentes durante as refeições. Nós crescemos juntos, passando todos os verões, até o princípio da puberdade, viajando para a região dos lagos para aproveitar melhor o sol. Ele me dizia que o otimismo tinha quatro pares de patas e me mostrava cada uma delas na areia, saindo de um cilindro assimétrico que desenhava com o dedo, pois naquela época eu não sabia ainda fazer contas e precisava ver que eram oito com clareza para entender como podia o otimismo subir pelas paredes e tecer em apenas uma noite enormes teias de seda para se pendurar no teto.
Aos treze anos, mais ou menos, ele me disse que não mais me acompanharia nas viagens de fim de ano e, quando perguntei o porquê, apenas me disse que preferia as ruas asfaltadas entre as feitas de pedra. Não soube dele desde então e, no ano seguinte, resolvi criar dentro de um pote de plástico com algodão molhado o meu próprio otimismo.
Meu pequeno otimismo cresceu com um esqueleto rígido envolvendo seu corpo diminuto e se alimentava uma vez por dia de pequenas porções de rotina que eu colocava na beirada do seu algodão. Em pouco tempo, cresceram nele presas curtas e enegrecidas as quais enfiava com alegria nas pequenas bolotinhas de rotina, desenvolvendo o estranho hábito de sugar de uma só vez seu conteúdo mole e gratificante, deixando penduradas no tecido que contornava o plástico carcaças recheadas de um tédio pegajoso que introduzia no lugar e envoltas em fios de desespero que desenrolava da própria saliva.
Meu otimismo, então, tinha quatro pares de patas, três segmentos de corpo e um esqueleto sólido envolvendo o tórax. Vivia nos pequenos paraísos de escuridão do meu quarto e entrava nos sapatos suados e impregnados de boas intenções passadas de prazo que eu costumava colocar para arejar em algum desses cantos aonde o frescor da madrugada fazia a curva durante a noite; entrava nos sapatos e esperava pacientemente para inocular suas toxinas na minha pele vulnerável quando eu chegava para esmagá-lo pela manhã.
Demorou bastante tempo até que eu compreendesse que o otimismo é a ruína da rotina e do convívio diário e percebesse que os otimistas, dentre as suas tantas peculiaridades, jamais andam olhando para o chão e, por isso, enfiam os saltos nas porções de terra entre os calços das ruas de pedra.
Portanto, antes que me arrancasse o privilégio de andar de cabeça baixa e de contar as vezes que meus pés tocam as linhas da calçada, resolvi que não podia mais criar a criatura selvagem dentro de um apartamento (talvez se eu morasse em uma casa com jardim, quem sabe). Deixei meu otimismo em um retiro de artistas, para que não se consuma sozinho com suas próprias expectativas, para que emoldure seus sonhos e os pendure em uma parede amarela de tinta e velhice, para que assista o desengano alheio explodindo em uma constante festa de despedida ao seu redor e não se sinta tão sozinho como na minha gaveta ou no meu sapato, comendo do pouco que restou dentro de mim para alimentá-lo além da realidade.