domingo, 21 de agosto de 2011

Exame físico

O abdome é dividido em nove quadrantes, os médicos delimitam previamente as linhas do esquartejamento, sobra aos assassinos pouco ou nenhum trabalho. Quero que você vá descendo a lâmina afiada da sua faca na linha imaginária marcada pelos mamilos, aproveite e roube, através deles, minhas melhores endorfinas batidas no leite. Quero que vá rasgando a pele aos poucos, isso, sem medo, sem deixar a mão tremer enquanto me corta, sem limpar o sangue que escorre, meu último desejo é sujar os seus sapatos.
Pela dor que eu sinto você já fez duas linhas verticais, dividiu meu corpo em três, mas as doenças são muitas, são necessários espaços menores para examinar alguém com precisão, não se preocupe, estou aqui para te ensinar, vou mostrar exatamente o que você tem que fazer. Seguro sua mão para te ajudar a abrir os dois últimos talhos horizontais, o primeiro bem na crista da bacia e o outro começando logo abaixo das costelas, imagino que você esteja pensando em como elas ficariam uma delícia defumadas e regadas ao molho de churrasco, queria que tivesse me avisado da sua antropofagia antes que eu te permitisse tomar conta da minha autópsia.
Pronto, estão aí expostos os nove pedaços de mim que você desconstruiu, quero que me diga qual deles apresenta o maior grau de macicez, só não repare essa discreta distensão ali no meio, bem aonde você apoiou a mão trêmula, cansada de tanto me dilacerar, é o resultado de todo o ar que engoli junto com as palavras que tanto ensaiei, mas que fiz questão de não te entregar.

domingo, 14 de agosto de 2011

Veja bem, meu bem

Tem aquela hora do dia (ou aquele fim de semana, ou aquele início de mês) em que você não consegue olhar ninguém no olho, mas tem que olhar. É chato como a gente tem sempre que olhar os outros no olho. Nos olhos, nos dois olhos, que saco. Um dos seus olhos mirando a cara inteira de outra pessoa, de várias pessoas, de todas as pessoas, chega de pessoas! Acaba o estrabismo distorcendo a conversa, tirando o foco do assunto - que começou só pra passar o tempo - mas ninguém se importa muito desde que você não solte a corda invisível que se estende daqui até ali, entre o espaço do meu e do seu nariz, a interação social não passa de um grande cabo-de-guerra de córneas sem atletas no banco de reservas, suas pupilas têm de ficar dilatadas até o final.
Mas então tem aquela hora que eu falei, aquela hora do dia em que você não quer olhar ninguém. Nessa hora me surpreendo encarando colegas e amores através do espelho, deixo os reflexos conversarem por nós, o olho do meu reflexo olhando no olho do reflexo de qualquer-um, são projeções de luz que se compreendem sem esforço, posso ficar de costas para você e, ainda assim, te olhar, parece bonito, parece poesia, mas é só cansaço mesmo, não tem beleza nenhuma em deixar um reflexo conversar no seu lugar, no meu lugar, parece que estou sozinha no desprezo de fixar o olhar.
Detesto me colocar como única nas situações que descrevo, mas é espelho, né? Não tem jeito, querendo você ou não, eu vou estar ali. Coloco minhas lentes para corrigir a miopia, o astigmatismo e o narcisismo, mas de nada adianta. A cada olhada que dou em você demoro três outras em mim, ajeito o cabelo, arranco um coágulo de sangue em cima da sobrancelha, sangue fora de validade parece carvão, é tudo meu, mas você não percebe que só olho pra mim mesma pois quero entender como você me olha, quero saber o que pareço pra você. Mas você também parece que só se olha, que penteado mais ridículo, é o que quero dizer, mas não digo, percebo que não quer que eu me vire pra olhar meu olho de verdade ao invés do meu olho-imagem, que bom, é bom mesmo, estou de fato cansada de olhar no olho, já disse que estou naquele pedaço do mês em que não consigo me segurar em olhos, me canso mesmo, me canso fácil desse jeito, não digo isso só porque te percebo desviando o olhar, me canso de verdade, fico feliz que a gente se entenda assim, conversa com meu reflexo, não faço questão de contato visual, que inútil essa coisa de olhar, é meio óbvio que se não posso olhar no seu olho não quero olhar no olho de mais ninguém.